quarta-feira, 14 de maio de 2014

Morre o maior sacanólogo do Brasil


Liêdo em foto de Cida Machado, 2010

POR XICO SÁ

14/05/14

E lá se foi o escritor e, de longe, o maior pesquisador da sacanagem popular brasileira, o velho safado Liêdo Maranhão, 88, que morreu nesta manhã no Recife, vítima de parada cardíaca -hospitalizado havia três meses, resistira a um AVC e a uma queda que lascou seu fêmur.

Quando soube da notícia, a primeira imagem que me veio foi a de Liêdo recitando Baudelaire, em francês, para a rafameia do Recife. Dizia na língua do poeta e traduzia na sequência, verso a verso, para os feios, sujos e malvados.

Dentista sem dente, como tratava da sua formação profissional, Liêdo, nosso guru da Praça do Sebo e da cachaça nos derredores do Mercado de São José, deixou livros, diários, pesquisas e um grande museu de objetos e folhetos sobre tudo que é safadeza e fuleragem do Brasil.

De comida de pobre, receitas para tempos de guerra -vide o mingau de cachorro- às aventuras na zona portuária do Recife, a opening city dos mariners, como era chamada pelos gringos.

Folclorista, antropólogo autodidata da poeira (povão no Recife), apanhador de costumes… De um tudo Liêdo era chamado nas ruas e na imprensa. Talvez o que mais gostasse, porém, fosse o tratamento recebido nos bares do Mercado de São José: bucetólogo. De tanto estudar os órgãos sexuais na visão da massa, mereceu a galhardia.

Futebol, sexo e religião -com mais sexo que os outros dois itens- formavam a santíssima trindade das investigações nada teóricas do mestre.

Liêdo estava para o Recife/Olinda como Joe Gould para Nova York. Lembro dessa comparação da jornalista Silvia Bessa em texto exemplar na revista Continuum (Itaú Cultural).

A diferença é que, com sua coleção de pesquisas e diários, Liêdo concretizou o sonho que o americano não conseguiu realizar, lembrou Silvia.
Conhecido boêmio da NY dos anos 1930 e 1940, Joe foi personagem do livro “O Segredo de Joe Gould”, de Joseph Mitchell (Companhia das Letras).

A utopia do boêmio e sem-teto Joe, no seu mergulho no submundo das ruas, era chegar ao que chamava de “a maior e mais importante história oral da humanidade”.

Liêdo deixa essa saga que o velho Joe tentou lindamente construir.

Para findar a louvação, um caso real de Liêdo Maranhão narrado a este cronista por Moema Cavalcanti -sim, a autora das capas de livros mais bonitas do país.

Liêdo, tarado por carnaval, aceitou um trato com a mulher, uma valente espanhola: não iria, pela primeira vez na vida, se esbaldar na sacanagem momesca. Tudo certo. Por um milagre, ele conseguiu cumprir a promessa.

Na Quarta de Cinzas, foi cobrar a recompensa. No que a mulher, braba que nem siri na lata, se esquivara. Revoltado, Liêdo bradou:

“Olhe, só existem duas coisas na vida com as quais não se brinca de jeito nenhum: cu e arma de fogo!”

A esposa havia prometido, obviamente, um prêmio em sexo anal pelo bom comportamento do marido no período carnavalesco. Desde então a frase “com cu e arma de fogo não se brinca” é um clássico popular no Nordeste.

Que a terra lhe seja leve, meu queridíssimo Liêdo.

 

 

domingo, 4 de maio de 2014

50 anos do golpe militar (VIII)


 

Edson Bezerra, Paulo Poeta e César Rodrigues

 

(*) Geraldo de Majella

         A luta contra a ditadura em Alagoas se deu em diversos campos. Os estudantes organizaram passeatas e manifestações denunciando prisões de líderes estudantis, bem como a censura à imprensa, ao teatro, a música e ao cinema. O Diretório Central dos Estudantes (DCE) da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), presidido por Radjalma Cavalcante, estudante de economia, em abril de 1967 criou o Cinema de Arte de Maceió.

 

         A ideia foi do crítico de cinema Imanoel Caldas, numa reunião onde estiveram presentes o estudante Gildo Marçal Brandão, o jornalista Bezerra Neto e Radjalma Cavalcante, fato conhecido e documentado pelo ex-dirigente estudantil. As sessões foram realizadas por dez anos no Cine São Luiz, da Empresa Luiz Severiano Ribeiro, a principal sala de cinema de Maceió.

 

         A parceria firmada entre o DCE e a empresa definiu atribuições: a empresa, em conjunto com a comissão do cinema de arte, escolhia os filmes e custeava a publicação semanal da folhetaria distribuída na entrada, com uma resenha crítica escrita por Imanoel Caldas e Gildo Marçal, sobre o filme a ser exibido. O jornalista Bezerra Neto, no Jornal de Alagoas, onde trabalhava, realizava os comentários semanais.

 

         O Cinema de Arte de Maceió passou a ser um polo aglutinador de jovens intelectuais; ao final de cada exibição ocorriam debates sobre o filme. A afluência ao cinema de arte cresceu e obrigou a comissão e a empresa a criarem mais duas sessões, desta feita no Cine Rex, no bairro de Pajuçara.

 

         O movimento estudantil atraiu público para as suas atividades culturais, iniciando pelo cinema e, no ano seguinte, em 1968, foram lançados os festivais de música. A ditadura militar exercia cada vez mais o domínio e a coerção. Enquanto foi possível, as manifestações culturais passaram a ser uma atividade significativa do DCE e de outras instâncias do movimento estudantil.

 

         O Teatro Universitário de Alagoas (TUA) e o DCE promoveram em maio de 1968 uma palestra no Teatro Deodoro com o dramaturgo paulista Plínio Marcos, na época já considerado pelo regime militar como um maldito, pelas suas posições críticas à ditadura militar. Os estudantes lotaram o teatro. Este fato motivou o TUA e o Departamento Cultural do DCE a contatarem a produção da peça do Plínio Marcos, Dois perdidos numa noite suja, em exibição em várias cidades e capitais, interpretada por Emiliano Queiroz e Nelson Xavier.

 

         O 1º Festival de Música Popular Brasileira foi realizado em novembro de 1968. A final aconteceu no Ginásio do SESC. As três músicas classificadas foram: 1º lugar: “Carta”, de Josimar Franca; 2º lugar: “Batuque no Banzo”, de Flávio Guido Uchôa; 3º lugar: “Manchete”, de Marcondes Costa. Menos de um mês após a final do festival é editado o Ato Institucional nº 5 (AI-5); a censura prévia é instituída, o habeas corpus foi suspenso e houve o recrudescimento da ditadura militar, com prisões, torturas, assassinatos e desaparecimentos.

 

         O 2º Festival foi realizado em junho de 1970, um ano e oito meses após a realização do primeiro, desta vez sob a égide do AI-5. Trinta e seis músicas foram inscritas, duas censuradas pela Polícia Federal. A música vencedora foi “Casa Nova para André”, de Vera Romariz e Wilma Miranda.

 

         No 3º Festival, realizado em dezembro de 1971, no Ginásio do Colégio Estadual, o vencedor foi o cantor César Rodrigues, interpretando a música “América, América”. Os festivais passaram a ter visibilidade na mídia, mesmo sob censura, e as composições tinham caráter político, tornando mais visíveis as ligações entre os festivais internacionais da canção e os regionais. As atividades culturais levaram adiante as ações da política estudantil, dando-lhe visibilidade e também mobilizando os estudantes em torno das atividades culturais. Este foi o último festival.

 

        O 1º Encontro de poetas universitários foi mais uma tentativa do TUA e do DCE, em 1969, de manter uma sequência de atividades culturais num clima de repressão e censura. A articulação realizada pelas duas entidades estudantis era legal e contava com o apoio da Reitoria e do governo do estado, além do Jornal de Alagoas e da Rádio Progresso. O vencedor foi o poeta José Geraldo Marques com a poesia “Cristo ou Marvel”.

 

         O cerco vai se fechando sobre o movimento estudantil, os lideres estudantis são cada vez mais observados pelos órgãos de repressão e prisões são realizadas em 1969, 1970, 1971 e 1973. O controle das entidades estudantis é executado, a partir das prisões, com intervenções nos diretórios e, sobretudo, com as prisões das lideranças.

 

         Em outubro de 1971 foi organizada a 1ª Caravana de Cultura, focada na música e no teatro como meio de expressão e difusão da produção artística universitária alagoana. A caravana apresentou-se em Aracaju. Três espetáculos foram mostrados ao público sergipano: um show musical baseado nas músicas apresentadas nos três festivais realizados em Maceió; outro de música erudita comandado por Fred Marroquim, e a encenação da peça “O Amor do Soldado”, do escritor Jorge Amado, dirigida por Sabino Romariz.

 

         Os festivais de música organizados pelos estudantes universitários ressurgiram, novamente por iniciativa do DCE. Nesse momento as mobilizações estudantis e operárias no Brasil integram a agenda da política nacional.

 

O 4º Festival ocorreu em janeiro de 1983. Deste festival as doze músicas finalistas comporão um long-play (LP) gravado pelo DCE, fato inédito no movimento estudantil brasileiro. O presidente do DCE, Edberto Ticianeli, é o diretor-geral do festival e um dos idealizadores do registro fonográfico.

 

         Dois outros festivais foram realizados, o 5º em 1984 e o 6º em 1985; o último se realizou nos estertores da ditadura militar, com a eleição de Tancredo Neves e José Sarney, no Colégio Eleitoral, no início da transição da ditadura para a democracia.

 

         O TUA ressurge em 1980, numa ação política dos estudantes da UFAL e da Escola de Ciências Médicas, sob a liderança de Denisson Menezes, afastado pelos militares que o prenderam em 1973. A peça “Ponto de Partida”, do dramaturgo Gianfrancesco Guarnieri, teve inicialmente a direção de Cláudio Barradas, posteriormente substituído por Dário Bernardes.

 

         A formação do grupo contou com Denisson Menezes, Cláudio Barradas, Rita de Cássia, Paulo (Poeta) Pedrosa, Hermé Miranda, Roberto Lúcio, Graça Cabral, Suetônio Sarmento e Jorge Barbosa. Essa formação se apresentou em Porto Alegre, Curitiba e Antonina (PR).

 

O TUA, sob a direção de Jorge Barbosa, tornou-se um grupo de teatro de rua, cumprindo um papel importante na renovação do teatro e até mesmo mudando o formato do que se realizava tradicionalmente em Alagoas.  

 

Fontes: Oliveira, José Alberto Saldanha de. A Mitologia Estudantil, Uma abordagem sobre o movimento estudantil alagoano. Maceió, Sergasa, 1994.

http://blogdaalessandravieira.blogspot.com.br/

Edberto Ticianeli, ex-presidente do DCE

Paulo Poeta, ator e ex-membro do TUA

 

(*) Historiador