sábado, 29 de janeiro de 2011

E o verão chegou












Geraldo de Majella

O verão é a estação em que o sol brilha intensamente e ninguém duvida que ele seja o astro-rei. O primeiro sinal do verão quem anuncia são as mulheres. As academias lotam, as fábricas lançam novas coleções, estampadas, floridas, sumárias, e as lojas expõem os produtos nas vitrines para atrair as clientes. Assim é anunciado o verão no Brasil.

A estação é percebida em cada metro quadrado das praias. É alegria em estado puro. Não é sentida por ninguém a falta do inverno, pois as chuvas e as baixas temperaturas deprimem, põem a todos enclausurados dentro de casa, comendo, bebendo, fumando ansiosamente e, mais grave, forçando a barra, chamando os amigos, parentes, colegas de trabalho para compartilhar o casulo, que se tornou a casa.

E quando se sai de casa é para ir a locais também fechados: restaurantes, bares, clubes sociais ou casas de festas. O sol vem acompanhado da alegria. As quatro estações no Nordeste do Brasil não são definidas claramente; apenas duas o são: o verão e o inverno. A primavera e o outono não são percebidos, sabe-se apenas que constam no calendário.

O dia amanhece cedo, anunciado pelos raios do sol, um espetáculo! Os notívagos, os que trabalham, os boêmios que viram a noite se encaminham para suas casas. Os que despertam logo se apressam para realizar a caminhada matinal à beira-mar, no bairro ou em outro lugar da cidade onde moram.

Mas é na praia que o verão se apresenta em corpo inteiro. As mulheres de todas as faixas etárias vêm à praia mostrar a beleza, o charme e a sensualidade que o verão permite e elas, e os olhos veem.
Os modelos, as cores, os corpos desnudos transformam as areias das praias em passarelas sem igual. O verão é esperado como se fosse um dos deuses do Olimpo com data marcada para chegar ao paraíso terrestre que é o mar.

As deusas a caminhar ou jogando frescobol, vôlei, velejando, tomando sol, cerveja, água de coco ou simplesmente azarando a moçada. Só por isso vale a pena viver e enfrentar o sol, mesmo com o anúncio feito pelos cientistas de que a camada de ozônio foi devastada.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

6º Prêmio Notáveis da Cultura Alagoas 2010

CONVITE

A Academia Alagoana da Boemia e o Blog do Carlito Lima têm o prazer em convidar V. Sra. e família para entrega do 6º PRÊMIO NOTÁVEIS DA CULTURA ALAGOANA a ser realizada na Barraca Pedra Virada, orla da Ponta Verde no dia 28 de janeiro ( sexta-feira), com a seguinte programação:

17:00 horas: Concerto ao pôr-do-sol com a Banda de Música do 59° Batalhão de Infantaria Motorizado, Exército Brasileiro.

18:30 horas: Tarde de autógrafo do livro, RUBENS COLAÇO, PAIXÃO E VIDA, de Geraldo Majella

19:00 horas: Entrega do 6º PRÊMIO NOTÁVEIS DA CULTURA ALAGOANA

20:00 horas: Canja com os ganhadores do Prêmio.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

São Paulo, meu amor.

Teatro Municipal

Edificio Martinelli

Vista panorâmica de São Paulo

Adoniran Barbosa

O professor e compositor Paulo Vanzolini

Catedral da Sé, marco zero da Cidade

Viaduto do Chã


Geraldo de Majella


Augusta, Angélica e Consolação

Augusta, graças a deus,
Graças a deus,
Entre você e a angélica
Eu encontrei a consolação
Que veio olhar por mim
E me deu a mão.
Augusta, que saudade,
Você era vaidosa,
Que saudade,
E gastava o meu dinheiro,
Que saudade,
Com roupas importadas
E outras bobagens.
Angélica, que maldade,
Você sempre me deu bolo,
Que maldade,
E até andava com a roupa,
Que maldade,
Cheirando a consultório médico,
Angélica.
Augusta, graças a deus,
Entre você e a angélica
Eu encontrei a consolação
Que veio olhar por mim
E me deu a mão.
Quando eu vi
Que o largo dos aflitos
Não era bastante largo
Pra caber minha aflição,
Eu fui morar na estação da luz,
Porque estava tudo escuro
Dentro do meu coração.
Música e letra de Tom Zé



São Paulo é uma das cidades de que mais gosto. Sinto-me bem quando por lá volto e me sentia melhor ainda durante os anos em que morei em Sampa. Nunca dei atenção e jamais fiquei maldizendo a vida na metrópole, por ser agitada, movimentada.

A cidade se transformou ao longo do século XX, deixando de ser uma cidadela e entrou para o rol das metrópoles. As vantagens e desvantagens podem ser contabilizadas. Alguns saudosistas lembram do passado calmo, tranquilo e seguro. Outros xingam, esbravejam contra os dias em que vivemos: barulho, insegurança, desemprego, tudo é motivo para se falar (mal) do gigantismo de São Paulo.

Eu, sinceramente, me amparo na beleza poética de Sampa, um dos hinos não oficiais de São Paulo, composto por Caetano Veloso:

“[...[Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas
Da força da grana que ergue e destrói coisas belas
Da feia fumaça que sobe, apagando as estrelas
Eu vejo surgir teus poetas de campos, espaços
Tuas oficinas de florestas, teus deuses da chuva [...]”

Não me zangava, de um modo geral; algumas vezes, sim, pois não sou de ferro, ao ficar preso durante horas no trânsito cada vez mais infernal. Ou durante as constantes enchentes que mudam o humor da população e destroem vidas e esperanças. Procurei e ainda procuro − quando estou na cidade − relevar os dissabores, ou, melhor dizendo: o caos urbano a que o paulistano vem sendo submetido.

As mazelas, procuro tirar por menos. O que me atraía e continua a atrair, a me seduzir em São Paulo, é o multiculturalismo. Mesmo depois de tanto tempo, continuo admirando a tolerância que há entre as muitas nacionalidades e etnias que convivem pacificamente na cidade.

Os nordestinos – meus conterrâneos − que vieram trabalhar na construção civil como operário, engenheiro, motorista, porteiro de edifício, professor, militar etc. ajudaram anonimamente na construção da maior cidade do país e numa das maiores metrópoles do mundo.

Deixando muitos deles em condições adversas, correndo da fome e da seca no sertão, mesmo assim chegaram à cidade com vontade de construir um mundo novo, uma civilização novíssima; trouxeram enfiado na matula os seus costumes, as tradições, culturas e a memória da sua terra, além da vontade indomável de trabalhar.

São Paulo me ganhou pela boca ou pelo estômago, como queiram. Os restaurantes, as cantinas, os bares, as docerias, as sorveterias e a leiteria americana, que já não existe mais. A diabetes me obrigou a mudar de vida e de hábitos alimentares, mas não me tirou o prazer de comer e viver.

A relação é enorme, alguns me ocorrem, e não fica bem deixá-los de lado. O Parreirinha, na General Jardim, foi ponto de encontro de Jamelão e de outros sambistas, inclusive de Paulinho da Viola. Na rua Aurora, 100, é servido o melhor chope da cidade, no Bar do Leo.

O filé do Moraes é inigualável, sendo sinônimo de boa refeição. A esquina da avenida Consolação com a rua Maceió é o endereço do Bar das Putas. Aí, cerveja, cachaça e costelas são servidas no capricho.

O Bom Retiro, bairro de poucas ruas, tradicional endereço da comunidade judaica em São Paulo, tem bons restaurantes. Dois me atraiam: O Acrópole, onde é servida a tradicional comida grega, e o Cecília, um restaurante especializado em comida judaica.

Em Moema, a tradicional choperia Joan Sehn se mantém frequentada pelos antigos e novos apreciadores de chope. O Bexiga abriga inúmeras cantinas, mas a Montechiaro é quem melhor serve o cabrito ítalo-paulistano. É a minha recomendação.

As livrarias, os museus, os shows, os teatros, os sebos, de tudo há na cidade. “Alguma coisa acontece no meu coração/ Que só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João”: o verso leva ao Bar Brahma, onde tantas e quantas vezes atravessei as avenidas famosas para tomar chope e jogar conversa fora.

São Paulo é uma coroa de 457 anos. Se eu falar que está enxuta, estarei mentindo, pois tem chovido sem piedade, mas hoje em dia se pode dizer que é uma coroa sem garoa.

Salve São Paulo!

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Para as estrelas me apontarem o caminho

Ricardo Cabús

Estava no aniversário de Zé Ivo, quando Atiba me propôs fazermos um evento juntos. É jazz? Perguntei. – Não, é blues, ele disse. Não tive dúvidas no título: Bukowski Blues. Em poucos dias estava tudo resolvido, seria no BomBar numa terça-feira (11/1/11), às 21 horas. Fiquei noites e noites lendo, selecionando e traduzindo poemas, já que tinha apenas seis ou sete do Bukowski.

Consegui chegar aos 25 poemas que se somariam aos 12 blues selecionados por Atiba. Na segunda-feira, todas as 45 mesas estavam reservadas, e ainda sairia uma bela matéria no Bom Dia Alagoas no dia do show. Desconfiei que a casa estaria cheia. Dito e feito, show com gente em pé por todo lado, encostando-se aos muros, árvores e carros das redondezas.

Disseram que havia mais de 300 pessoas. Desconfiei que o Bar não fosse dar conta. Dito e feito, o que aumentou o clima bukowskiano da noite. A plateia era eclética, a maioria de jovens que se mesclavam à geração que lera Bukowski quando tinha a idade deles. O show atrasou devido a problema com um dos instrumentos na passagem de som. Depois de abrir minha garrafa de cachaça, começamos o Bukowski Blues algo depois das nove e meia. Ricardo Cabús

Iago leu um texto de apresentação do show, que se iniciou com Atiba Taylor e Ricardo Lopes levantando a plateia com um belo blues que não lembro o nome agora. Em seguida, eu disse ‘A genialidade da multidão’. Músicas e poemas se cruzarão de forma harmônica. Got a feeling, Down home blues, Georgia, Summertime, dentre outros blues, alternaram-se com poemas como role os dados, o amor é um cão do inferno, confissão, como ser um grande escritor e azulão.

A música estava perfeita. Atiba, em noite inspirada, cantou, tocou sax, piano, agitou a plateia. Ricardo Lopes fez o que quis com a guitarra e o violão. Havia química entre os dois e o público. Em certo momento, o músico norueguês, Rolf-Eric Nistrom, que estava de passagem por Maceió, se juntou à Atiba e Lopes e deu uma canja mais que especial. Enquanto dava vazão à minha exclusiva garrafa de cachaça, em homenagem ao velho Buck, os poemas eram ditos. Creio que alguns saíram legais.

Um detalhe, depois de lidos, eu sempre jogava os poemas ao chão. Entre um gole e outro noto um apanhador de poemas, que corria para pegá-los, cada vez que uma folha procurava o melhor trajeto para encontrar o solo. Era Luiz, que provavelmente também estava alcoolicamente sintonizado com o clima bukowskiano da noite. Percebi que Janaína e Majella sorriam. Houve um momento que apareceu um carro da polícia. Era um show, mas como eu estava dirigindo bêbado, pensei logo que era comigo.

Mas não, os caras ficaram ouvindo a bela música e alguns poemas até que saíram quando li um verso que falava da estreiteza de uma parte muito interessante (pelo menos para mim) da anatomia feminina. E como em quase todos os meus eventos, choveu. Mas o álcool fez-me não perceber a chuva, nem o relógio.

O que era para ser uma hora e meia de apresentação tornou-se três. Fiquei impressionado quando percebi que passava da meia-noite e as mesas estavam praticamente todas ocupadas. Fechamos o show com azulão (bluebird) “em meu coração existe um pássaro um azulão que quer sair mas eu não permito, ...”. Ainda tive consciência para autografar – com um garrancho ilegível, mas cheio de felicidade – alguns exemplares de ‘Cacos Inconexos’.

Ouvi alguns comentários legais das pessoas e dei uma entrevista para um blog. Espero que não tenha falado muita bobagem, pois não consigo lembrar o que disse e nem mesmo o endereço para ler a entrevista. Em seguida, escolho uma mesa afastada, sento acompanhado de minha garrafa e tomo meu último gole, enquanto o céu de Maceió abre suas pernas para as estrelas me apontarem o caminho.

(mais sobre o Bukowski blues em cacosinconexos.blogspot.com)


terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Tudo começou em Mossoró

Tomislav R. Femenick


Dizem que nós, os filhos do “país de Mossoró”, somos extremamente bairristas e há até os que pensam que, além disso, somos metidos; queremos ser mais do que somos. É uma tremenda inverdade e injustiça que fazem com os que nasceram na terra de Santa Luzia de Mossoró, assim como eu. Vejamos um fato concreto: a eleição de Dilma Rousseff para presidente da República e sua posse no último dia primeiro. Há dois aspectos a considerar. Primeiro não votei nela, até porque concordo com seu aliado, o piroquete, irrequieto e agitado Ciro Gomes: o José Serra é muito mais capaz e preparado para dirigir o Brasil. Depois os votos mossoroenses não eram suficientes para leva-la ao Palácio do Planalto.

Apesar de todas essas considerações, repito o título deste artigo: tudo começou em Mossoró. A base foi a Lei Estadual nº 660, de 25 de outubro de 1927, que fez do Rio Grande do Norte o primeiro a estender o direito do voto às mulheres. Um mês depois, no dia 25 de novembro de 1927, o nome de Celina Guimarães Vianna, foi incluído na lista de eleitores da Cidade de Mossoró. O acontecimento teve repercussão até no exterior, pois ela não somente era a primeira eleitora do Brasil, mas, também, da primeira eleitora da América do Sul.

Desde o inicio do século passado que as mulheres lutavam para conquistar o direito do voto. Muitas combateram essa luta democrática, muitas enfrentaram resistências veladas, grosseiras e até ataques físicos. Talvez por isso, após conquistar o seu status de eleitora Celina, que até então não tivera nenhuma atuação política, passou a fazer proselitismo pela participação da mulher nas escolhas eleitorais. Ao receber a confirmação de sua inscrição eleitoral, Celina telegrafou ao presidente do Senado Federal requerendo que todas as mulheres tivessem o mesmo direito. Elaborou um panfleto e o distribuiu na cidade, convocando todas as mulheres para que fizessem suas inscrições no cartório eleitoral e para que votarem, fazendo ver que tal ação contribuía para o progresso da cidade, do Estado e do país.

Celina Guimarães era filha de José Eustáquio de Amorim Guimarães e Eliza de Amorim Guimarães. Nasceu em 1890 em Natal, onde estudou e concluiu o curso de professorado na Escola Normal, onde conheceu Elyseu de Oliveira Viana, um jovem estudante – mas tarde advogado e também professor –, com quem se casou. Mudou-se para Mossoró em 1914. Como educadora, utilizava o teatro como forma de despertar o interesse dos alunos (como substituto da palmatóra, instrumento de uso generalizado na época). Ela mesma redigia e dirigia as peças, desenhava e criava os figurinos. “Por essa e outras iniciativas pedagógicas, Celina foi incluída no Livro de Honra da Instrução Pública, um reconhecimento pelos bons serviços prestados ao Estado” – diz Semira Adler Vainsencher, pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco, do Recife.

Nós mossoroenses somos acostumados com as mulheres na política, quer nos bastidores, quer na linha de frente. Há quase quinze anos o “o país de Mossoró” é dirigido por prefeitas. Há oito anos o Rio Grande do Norte é dirigido por uma mulher, Wilma de Faria, uma mossoroense. Agora vai ser governado por outra mulher, Rosalba Ciarline, também mossoroense, que já foi prefeita de nossa cidade e senadora da República. A cidade de Natal é dirigida por uma prefeita, assim como várias outras do interior.

Dilma não é mossoroense nem norte-rio-grandense. Mas para chegar lá, foi preciso que dona Celina Guimarães Viana lutasse a luta que ela lutou, em nome de todas as mulheres brasileiras.
_____
O Globo. Rio de Janeiro, 05 jan. 2011. O Jornal de Hoje. Natal, 03 jan. 2011. Gazeta do Oeste. Mossoró, 05 jan. 2011. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 07 jan. 2011.

O jornal o Globo publicou este estigo com o título "Mulheres dominam a política do Rio Grande do Norte"

domingo, 9 de janeiro de 2011

Aos 50 anos, o balanço − II [Deixa a vida me levar, vida, leva eu!]

Majella convocando os comerciários para a greve geral em 1986


Passeata pela anistia em 1979

Lauro Pedrosa discursando diante dos estudantes na entrada da reitoria da UFAL

50 Anos

Eu vim aqui prestar contas
De poucos acertos
De erros sem fim
Eu tropecei tanto as tontas
Que acabei chegando no fundo de mim
O filme da vida não quer despedida
E me indica: ache a saída
E pede socorro onde a lua
Que encanta o alto do morro
Que gane que nem cachorro
Correndo atrás do momento que foi vivido
Venha de onde vier
Ninguém lembra porque quer
Eu beijo na boca de hoje
As lágrimas de outra mulher
Cinquenta anos são bodas de sangue
Casei com a inconstância e o prazer
Perdôo a todos, não peço desculpas
Foi isso que eu quis viver
Acolho o futuro de braços abertos
Citando Cartola:
- Eu fiz o que pude
Aos cinquenta anos
Insisto na juventude

Paulinho da Viola
composição: Aldir Blanc e
Cristovão Bastos


Geraldo de Majella

Tenho me distanciado de Anadia; não é caso pensado, no primeiro momento vim morar em Maceió, voltava durante as férias. Fiquei com a sensação de que deixei a cidade, mas a cidade não saiu de dentro de mim.

Nas férias, revia os amigos, caminhava pelas ruas, rememorava fatos vividos durante a infância e adolescência. Fui percebendo: quanto mais o tempo passava e as minhas idas se tornavam raras, quase bissextas, a cidade crescia em minhas lembranças.

Vivendo em Maceió, estudante na década de 1970, a volta, mesmo que fosse rápida, era um encantamento. Fazia comparações entre uma cidade e outra. Procurava sempre encontrar uma situação nas comparações que fosse favorável a Anadia, claro. Isso tinha a importância semelhante a um pagamento, pois eu estava quitando uma divida sentimental, certamente por ter deixado de viver na cidade onde nasci.

Se em Maceió há praias, naquele tempo, o rio São Miguel era comparativamente melhor para mim. A lembrança da praia do Sobral nunca me saiu das retinas, desde o primeiro instante em que a avistei, sentado na mureta da casa da Bebé Carneiro de Moura, prima querida, na rua Dias Cabral. Que visão mágica!

Fui crescendo e passei a conhecer os meandros da malandragem e da boemia na capital. Sentia-me um adulto, sem emprego, vida de estudante, com pouquíssimo dinheiro, mas com relativa liberdade, conquistando novos amigos, alguns ricos, outros remediados. Essas diferenças de classe não me diziam nada até então.

A praça Deodoro era um point de estudantes, boêmios, artistas, jovens intelectuais. Fui aos poucos conquistando espaço naquele meio; tudo era novo e perigoso também: rolavam drogas, o álcool predominava entre as drogas, sendo a maconha, entre as ilícitas, a que mais era consumida.

O clima político que o país vivia era de opressão; a ditadura militar exercia controle sobre as pessoas e sobre as coisas. A turma heterogênea da praça ficava entre a banca de revista e os botecos do entorno; a figura destacada do cantor negro César Rodrigues, vestido como se fosse um sósia de Fidel Castro, Marcos de Farias Costa, Marcelino Máximo Dantas, e os discursos alucinados do dr. Rui Sales.

Nada me continha, porque o desejo de conhecer o mundo, pelo menos o mundo que estava em minha volta, tinha de ser conhecido, vivido, correndo riscos − e os corri. Entendo hoje que foram necessários. Havia pois um certo grau de responsabilidade em tudo ou quase tudo que eu fazia. Pode parecer uma incoerência, mas, creiam, não me joguei de cabeça em tudo.

A frase tantas vezes dita por meu pai ecoava em minha cabeça; ainda hoje reflito a esse respeito: “Tenha cuidado com quem você anda e o que faz, pois não tenho dinheiro para lhe tirar da cadeia. Não vou suportar vê-lo na cadeia”.

Para o meu pai, homem do interior, quem tinha dinheiro não era preso; mesmo durante a ditadura militar, a força do dinheiro ditava tudo na vida. A vida me ensinou que o velho não estava de todo errado, não. Nunca fui preso ou detido para averiguações.

As “notícias” que chegavam aos ouvidos do meu pai − com um certo atraso −, nunca eram as reais, com destaque para fatos que não ocorriam. Em alguns momentos esses fuxicos se aproximavam da realidade. A mistura de temas era propositalmente feita. Lembro de uma farra de que participei em companhia de amigos de Anadia − todos saindo da adolescência −, no Canaã, zona de prostituição de Maceió.

A prova irrefutável foi a farta documentação manuseada pelos meus pais. O fotógrafo conhecia a minha família, tinha sido inclusive aluno de minha mãe, e também conhecia a família de dois dos farristas, os irmãos Lauro e Luiz Carlos Teixeira.

O paparazzi anadiense rapidamente nos convenceu de posarmos com a putada; concordamos, e com os copos nas mãos, sorrisos largos e gestos extravagantes, fomos clicados. Em poucos dias, visitando Anadia, foi entregar as fotografias e receber pelo serviço, lógico. Fotografias grandes, creio fossem tipo 15 x 22cm, em que posávamos na Areia Branca, a mais famosa casa do ramo, que tinha o lendário Benedito Alves dos Santos, o Mossoró, como proprietário. Diga-se de passagem, figura cortejada na sociedade alagoana.

Foi um vexame, pois não tive como negar; o máximo que pude fazer foi atenuar a situação, colocando a responsabilidade na “conta” de um primo muito mais velho, Lucas Fidelis Freire. Mesmo assim não me livrei do sermão quase interminável de meu pai e do estado colérico de minha mãe.

Movimento estudantil

A política estudantil foi me atraindo e em pouco tempo se descortinava um mundo totalmente novo e atraente. A noção exata do perigo, confesso que no primeiro momento não tive; tudo era emoção e vontade de fazer algo que fosse importante para derrubar o regime militar. Eu queria era viver aqueles momentos.

Isso no colégio Guido de Fontgalland, para onde havia ido estudar, já que fora convidado “gentilmente” a deixar o colégio Marista, depois de quatro anos estudando como bolsista, visto que a minha conduta não era compatível com a disciplina dos irmãos Marista.

Para os meus pais o que motivou a minha saída do colégio Marista foi a discriminação de classe. Era um mundo de rico, portanto não era possível ser tratado de forma diferenciada. A alternativa possível era ir estudar no colégio Guido. Salvei-me dos constrangimentos e quem sabe ainda de reprimendas de minha mãe.

A minha porta de entrada para o movimento estudantil estava no colégio Guido de Fontgalland. No primeiro dia de aula, encontrei José Miguel Correia; desse dia em diante nos tornamos amigos e logo percebemos que tínhamos amigos em comum. Eu era amigo de Sebastião Barbosa de Araújo (Betinho), advogado e ex-deputado; ele, amigo e funcionário da usina João de Deus, que tinha Antonio Moreira como diretor e sócio. Betinho e Antonio eram amigos de longas datas.
Betinho, militante do PCB, e Antonio Moreira, aliado e colaborador financeiro. Eu de Anadia e Miguel de Capela. Não demorou, estávamos reativando o Grêmio Jacques Maritain, inicialmente com a permissão do cônego Teófanes Barros, diretor do colégio. Antes, falamos em nome dos dois ex-alunos do cônego, o que nos serviu de salvo-conduto. Estou tratando de 1978, período em que o regime militar ainda era forte e vigilante.

As relações políticas cresceram e aos poucos novos interlocutores foram aparecendo: Hegênio Ticianelli, Vitor Palmeira, Apolinário Rebelo, Pedro Fidelis, Eunides Lins e outros. Sob a influência de Betinho começamos a transitar no movimento estudantil secundarista.

As tarefas começaram a aparecer; tudo era novidade, e nos desdobrávamos para cumprir reuniões, muitas reuniões, umas comicamente para marcar outras, mas o que importava era a agitação, as pichações, as colagens de cartazes pelas ruas da cidade durante a noite, o mais tarde possível.

O bunker eram as pequenas salas laterais do restaurante universitário e da moradia dos estudantes na praça Sinimbu. Entre todos os estudantes o que mais me chamava a atenção era um tipo magricela, de cabelos desgrenhados, que liderava sem gritar, argumentava com inteligência e pouco chavão. O nome dele: Aldo Rebelo.

No final dos anos 1970 e toda a década de 1980 surgiram grandes lideranças. O movimento estudantil foi o primeiro grupo que se organizou em Alagoas, em meio à ditadura militar e às prisões, com a aplicação do Decreto 477. As vitórias, algumas pequenas, porém significativas, nos centros Acadêmicos, por exemplo, fizeram parte da vitória maior que foi a retomada do DCE da Ufal, com a eleição de Maurício Macedo, hoje médico e consagrado poeta das Alagoas.

Essa euforia me contagiava; mesmo não sendo universitário, me sentia parte integrante da luta. Era um deles. As atividades cotidianas consumiam o tempo. Tudo girava em torno das inúmeras tarefas; vivia-se numa roda-viva, mas a preocupação com a leitura e a formação política era obrigatória.

Fiquei, e creio que o José Miguel também ficou no meio do fogo cruzado. Os nossos contatos políticos eram baseados na orientação política do Partidão; já os outros, a maioria dos estudantes secundaristas, eram área de influência do PCdoB, força política hegemônica naquela época.

Para ser sincero, o PCB ainda não estava organizado; só a partir de 1980, alguns meses depois da anistia, é que ocorreu a reunião que deu início à reorganização do que havia sido a maior força política de esquerda em Alagoas.

A revolução nicaraguense foi a nossa Sierra Maestra − para mim e para essa geração. Dezenas de estudantes foram mobilizados para arrecadar remédios, visando socorrer o povo daquele país, que sofria com mais um trágico terremoto. Esse gesto humanitário contou com o apoio da Cruz Vermelha.

Tudo passou a ser um aprendizado, e que aprendizado! As disputas ideológicas nos dividiam, a exemplo da Guerra Fria. O movimento estudantil foi uma escola para muita gente. Aldo Rebelo, Edberto Ticianelli, Enio Lins, na Ufal, entre muitos outros; e Júlio Bandeira, Lauro Pedrosa, na antiga Escola de Ciências Médicas, eram os regentes da agitação organizada em Alagoas. O brado, quem deu pelos estudantes foi Renan Calheiros, não há como esconder, pois foi o legítimo representante da estudantada que vociferava pelo campus da Ufal por liberdade.

Não me tornei um líder estudantil, apenas fui eleito presidente do Centro Acadêmico da minha faculdade, mas nem por isso deixo de confessar que o movimento estudantil foi uma grande escola.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Bukowski blues


Pessoal,

Na próxima terça, 11/1/11, às 21h, no BomBar (Jatiúca) - o Instituto Lumeeiro apresenta uma noite de poesia e música: Bukowski Blues. Ricardo Cabús traz a poesia de Charles Bukowski - o melhor poeta dos Estados Unidos, segundo Jean Paul Sartre - banhada no blues de Atiba Taylor e Ricardo Lopes.


Serviço
Evento: Bukowski Blues
Quando: terça-feira, 11/1/2011, 21h.
Local: BomBar - Jatiúca - Maceió - AL.
Mesas (4 lugares): antecipada: R$ 12,00
No dia: R$ 16,00
Vagas limitadas
Informações e reserva de mesas: 8872.1705 / reservas@lumeeiro.org
Promoção: Instituto Lumeeiro
Apoio Cultural: Rádio Educativa FM, Instituto Zumbi dos Palmares.
Informações e reserva de mesas (limitadas): 8872.1705 / reservas@lumeeiro.org

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Lula em Alagoas, pela primeira vez

Freitas Neto e Lula no auditório da Academica Alagoana de Letras


Geraldo de Majella

O presidente da república mais popular da história do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, nem sempre foi bem recebido por onde andou. A primeira vez que Lula esteve em Alagoas no dia 20 de setembro de 1978, na condição de presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo.

A vinda de Lula a Alagoas fez parte das comemorações do dia do radialista; sua presença teve o objetivo de aproximar mais os sindicatos de Alagoas e os de São Paulo, o dos metalúrgicos do ABC, em especial.

O convite foi feito pelo então presidente do Sindicato dos Radialistas de Alagoas, José Adelmo dos Santos. O sindicalista nordestino de Garanhuns (PE), o metalúrgico, formado pelo Senai como torneiro mecânico, fez uma conferência na Academia Alagoana de Letras, o mais importante auditório de Alagoas, naquela época.

O dirigente sindicalista Adelmo dos Santos sofreu pressões da Federação dos Trabalhadores nas Indústrias de Alagoas, que publicou até mesmo uma nota oficial nos jornais de Maceió, recomendando aos sindicatos filiados à federação que não fossem à conferência do sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva.

O delegado do Trabalho em Alagoas, José de Barros Sarmento, também pressionou, porém, diante da firmeza do presidente do Sindicato dos Radialistas, que contava também com o apoio irrestrito do presidente do Sindicato dos Jornalistas, João Vicente Freitas Neto, teve de amargar uma derrota: saber que o auditório da Academia Alagoana de Letras lotou com sindicalistas, estudantes, intelectuais e opositores ao regime militar.

Lula declarou que:
“[...] é com muita satisfação que saí de São Paulo me propondo a cumprir o compromisso assumido por telefone com o Adelmo, para vir ao Estado de Alagoas. Não para fazer uma palestra, porque não teria condições de fazê-la. Não para fazer uma conferência. [...] Gostaria antes de começar a ter um papo com vocês fazer um pedido que , não é nenhuma novidade. Isso eu faço em qualquer lugar que eu vou. Se tiver aqui algum policial com interesse de anotar o que eu com dizer. Eu só peço para que seja o mais honesto possível, que não escreva mentiras, porque já fui duas ou três vezes prejudicados por relatórios falsos. (Aplausos).”

“[...] Eu acho que vivemos um momento histórico na vida do país. Entendo eu que o Brasil, a curto prazo de tempo, será ocupado por pessoas que sintam coragem de olhar o povo brasileiro de cabeça erguida, não por falsos dirigentes sindicais, nem por falsas pessoas que só sabem espoliar o povo brasileiro”.

domingo, 2 de janeiro de 2011

Aos 50 anos, o balanço - I [Deixa a vida me levar, vida, leva eu!]

Na primeira comunhão


Aos 15 anos

O pai quando jovem

Josias Marques(meu pai) e Mendes de Barros

Marinalva Fidelis (mãe)

Feira de Anadia na década de 1950

Feira de Anadia


Cadeia Pública atual Casa de Cultura de Anadia

[...] O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.
O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vaiE donde ele vem.
E por isso porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.[...]
Fernando Pessoa - Poemas de Alberto Caeiro

Geraldo de Majella

Quando eu nasci, em 2 de janeiro de 1961, a cidade de Anadia (Alagoas) não dispunha de maternidade e nem sequer médico havia na cidade. O serviço público de saúde era precário, existia apenas um pequeno posto de Puericultura. As gestantes de risco não tinham alternativa a não ser recorrer aos serviços voluntários das parteiras.

A gestação da minha mãe não estava incluída nas de alto risco, mas num parto normal para o qual a Nina Chagas já estava de sobreaviso. “Mãe” Nina, como passei a chamá-la desde muito cedo, fez algumas centenas de partos na cidade e na zona rural.

Católica fervorosa, depois que nasci, rezou, me limpou e foi logo dizendo para os meus pais que eu seria protegido por Senhora Santana. A baixinha, carinhosa, de voz mansa, experiente nessa atividade tão nobre, todas as vezes que se encontrava comigo – desde criança e depois já adulto – me benzia com ramos de arruda ou fazia o sinal da cruz com o polegar direito. E dizia: “Senhora Santana é quem lhe protege, Geraldo”.

O casal, meus pais, havia passado por um momento de profundo pesar com a morte prematura do meu primeiro irmão, que se chamou, por alguns poucos dias, Geraldo de Majella.

O parto foi complicado e por pouco minha mãe não morreu; ele foi extraído a fórceps numa maternidade em Maceió. Da segunda gravidez de minha mãe nasceu a minha irmã Rosa Maria, e eu ao nascer acabei herdando o mesmo nome, pois meu avô Salvador Elísio Marques, que era devoto de São Geraldo, pediu aos meus pais que voltassem a colocar o nome do santo no próximo filho homem. Sobrou para mim o nome.

Anadia é uma cidade centenária, construída pelos portugueses próximo à margem direita do rio São Miguel. Os colonizadores escolheram o bonito e amplo vale que, quando visto do alto – da escadaria da igreja Matriz de Nossa Senhora da Piedade – se tem a visão geral no horizonte da serra da Morena e do São Miguel.

O São Miguel nasce nas terras altas e frias de Mar Vermelho; as águas correm em direção à foz, no Oceano Atlântico, na encantadora Barra de São Miguel, riscando ao meio o vale, fertilizando as terras nas vazantes, pastagens que os holandeses em 1643 disseram ser os mais belos pastos de todo o Brasil, evidentemente do que se conhecia no período colonial.

O rio São Miguel para mim sempre foi um encantamento, e em suas águas calmas no verão e revoltas no inverno, os meninos diariamente saíam em bando, num desafio infanto-juvenil, para mergulhar em todas as direções.

Saltar das árvores mais altas, as ingazeiras preferencialmente. Seria impossível recordar quantas vezes me senti um escafandro mergulhando sem qualquer aparelho, entre as suas pedras, numa profundeza que muitos adultos não se arriscavam; mas menino é assim, indomável, desconsidera o perigo. Para mim e para a maioria dos amigos, nada nos continha.

Saltos ornamentais, ninguém na cidade tinha a menor ideia do que fosse, mas eram dados durante os períodos de enchente, quando o rio transbordava inundando a parte baixa da cidade, a rua do alagadiço ou o sertãozinho.

Meninos e adultos, postados em fila da ponte do Urubu, sobre o São Miguel, saltávamos como se ali fosse uma plataforma, e nós os competidores, acrobatas

As idas diárias ao rio era quase uma religião. No período de estiagem tomávamos banhos, observávamos o trabalho duro das lavadeiras, com trouxas imensas de roupas sendo lavadas, estendidas sobre o capim ou nas cercas de arames farpado, sob o sol escaldante para quarar.

A nossa diversão se dava em meio ao trabalho das mães, das filhas lavadeiras de ganho. Quando adolescente, tendo superado a ingenuidade dos tempos de criança, nossas presenças vespertinas na beira do rio tinham outros interesses não confessáveis: pegar lances picantes das lavadeiras; nos banhos nos finais de tarde, não era raro presenciar algumas delas nuas ou seminuas.

O rio fez parte das nossas vidas. O tempo passou e o rio também passou; já não é o mesmo rio, e as suas águas já não correm com a mesma beleza que na época de criança e adolescente.

A força das águas, por todos perigosamente desafiada. Minha mãe, nervosa, figurativamente andando de um lado para outro com o coração saído pela boca, numa das mãos ou passando de uma para outra mão, uma tabica de cipó-fogo que invariavelmente seria empregada como castigo do filho, que costumeiramente desobedecia as suas ordens e punha a vida em risco, alegremente.

As surras se tornaram um espetáculo. Foram tantas surras, incontáveis, todas motivadas pelas reincidências. O rio tinha um imã que atraia a mim e aos outros moleques, parentes, vizinhos, colegas de escola e também os adultos, que sem minha mãe saber era quem nos protegia e algumas vezes nos salvava dos apuros náuticos.

Mas não eram apenas os banhos o que me levava ao rio São Miguel; outras tantas vezes fui em companhia de José Marques, meu tio-avô, pescar de rede. A nossa praia era o rio. Os pescadores, como em todos os lugares, são excelentes contadores de estórias, e o velho tio para mim era o maior.

Os primos, filhos do tio, também adoravam ouvir as estórias, muitas criadas na hora com uma engenhosidade que até hoje, passados muitos anos, continuo a me lembrar delas e percebo como essa fase da vida me marcou.

Anadia tem para mim um significado quase mítico, uma cidade onde tudo ou quase tudo aconteceu, menos os cem anos de solidão, sem querer traçar qualquer paralelo com a Macondo, cidade mítica de Gabriel García Márquez.

A vida corria solta, livre; eram pouquíssimos os automóveis que trafegavam pelas ruas estreitas, não chegavam a incomodar, muito menos traziam perigo. Sentávamos nas calçadas e contávamos estórias, cada um inventava a sua. O leito das ruas servia de campos improvisados e jogávamos futebol, ximbra, pulávamos garrafão e rouba-bandeira.

Os sonhos corriam soltos de cabeça em cabeça e depois de externados em público os seus detentores tinham a obrigação “moral” de defendê-los no melhor estilo. O que sonhei nunca consegui realizar. Sonhava ser piloto de avião. O desejo de ser livre, de voar, me seduzia tremendamente. Ainda hoje adoro a aviação.

Havia um exemplo familiar para me ancorar, um primo que regulava a idade de meu pai, era oficial da aeronáutica. Era o único da cidade. Talvez por isso fosse por mim tão admirado, filho de uma tia-avó de meu pai, bem postos economicamente, dizia-se ser a família com a maior e melhor propriedade rural do município.

Na impossibilidade de ser piloto de avião, me contentaria em ser caminhoneiro como outros primos da família da minha mãe. Mas também queria ser músico sanfoneiro. Instrumento tão popular, eu me espelhava no mais famoso da região, Antonio do Baião, que se tornou um músico oficial da cidade e nas festas mais importantes era contratado para tocar e cantar. Chegou a gravar um compacto simples. As rádios de Maceió tocaram as suas músicas e, o mais significativo, havia acompanhado o rei do Baião, Luiz Gonzaga, num dos seus shows pelo interior de Alagoas, suprema glória.

A boemia era outra coisa que me atraia, e assim a cada instante mudava de profissão, coisa de criança.

A que mais tempo permaneceu foi a de dançarino de cabaré. Adolescente, fui assíduo frequentador do Pernambuco Novo, rua onde se localizava o cabaré em Anadia. Não só lá, em outros cidades vizinhas, inclusive Arapiraca, que tinha um nome curioso: cabaré do Jesus, alusão clara ao proprietário.

Os dançarinos: Vicente Freire, caminhoneiro de profissão e boêmio como vocação, era um exímio dançarino e disputava nos salões com o primo Luiz Fidelis quem melhor dançava, quem inovava nos passos com movimentos sincronizados.

Todas essas disputas eram embaladas com cervejas e cachaças. O cabaré era o espaço mais utilizado na cidade, já que não havia bailes com frequência. Mas dançar foi uma cosia que nunca aprendi, pelo menos como um dia sonhara num sonho juvenil, e muito menos me tornei dançarino de cabaré, apesar de tê-lo frequentado durante anos.

A transgressão, para mim, acredito tenha sido inata As ordens na infância, adolescência e juventude nunca foram bem-vindas e muito menos aceitas com passividade. Um exemplo: décadas depois vim a compreender quão autoritário é o sistema de ensino. Os castigos físicos eram uma regra, e todas as vezes que sofri algum castigo me rebelei. Sem exceção.

A escola, logo a comparei a uma prisão, e desde muito cedo me postei contra todo tipo de aprisionamento. Recusei-me a aprender as lições regulares ministradas pelas professoras, inclusive minha mãe, que aplicava a pedagogia da palmatória intensiva.

O que mais me atraia eram desenhos, jogos e leituras não obrigatórias. O meu caminho natural não era a sala de aula, mas a sala temida de castigo. Esse local detestado ficava junto à diretoria da escola, junto à pequena e desarrumada biblioteca.

A liberdade de escolher os livros para ler me transportava para outro mundo, o das fantasias extraídas das leituras, a magia do lugar que, diga-se com sinceridade, não era amplo, ventilado ou bem cuidado mas era onde me tranqüilizava, ou melhor, onde eu era “domado” e contido.

A cidade tinha uma biblioteca pública, mas não dispunha de bibliotecário; quem cuidava dela com zelo e carinho era Zeca Olimpio. Aquele senhor, mais velho que meu pai, me cativava, e posso confessar que abriu um novo horizonte para mim: o da leitura e o do gosto pelos livros.

Havia naquela época o sistema de empréstimos de livros, mas antes o Zeca Olimpio indicava o livro apropriado de acordo com a idade e a série, além de uma pequena resenha sobre o autor ou texto. Assim ficava mais agradável ler e vinculava o jovem leitor ao orientador.

A vida foi passando surras fui tomando e caminhos alternativos foram sendo abertos − alguns por meu pai, já que minha mãe, professora das primeiras séries, o que hoje se denomina ensino fundamental, jamais compreendeu que havia outros métodos de ensinamento mais eficazes.

Aulas particulares foram uma das alternativas. Nas aulas de matemática, por exemplo, me saí bem; nada excepcional para mim, a não ser a juventude e a beleza da professora Socorro Peroba: ela, com paciência, me conduziu para o mundo lúdico do desenho e das leituras. O conteúdo diferia do que era dado na escola regular. As escolas que frequentei foram apenas para obter o certificado oficial e passar de ano. Isso, na primeira fase dos estudos no antigo curso ginasial e cientifico.

Depois continuei com o mesmo sofrimento. Tanto isso é verdadeiro que a minha conduta nunca foi das melhores pelas escolas por que passei. E até hoje não sinto nenhum remorso em não saber quantas ilhas há nas Filipinas ou qual a maior ilha fluvial do mundo. Ou coisa do gênero.

Mas sei da importância de Graciliano Ramos para a literatura e para a vida. Isso me basta. Quem me fez gostar dele primeiro foi o Zeca Olimpio. E quantos se lembram daquele velhinho simpático e gentil?