terça-feira, 6 de julho de 2010

A voz da minha avó

Dona Rosinha

João Sapucaia, dona Vicentina, Maria Betania, dona Rosinha, Marinalva e a filha Rosa, Josias e Bebé, em 1959.
Geraldo de Majella


Acordei ouvindo uma voz que me era muito familiar. Levantei, fiquei de pé para ter a certeza de que estava realmente acordado. De fato estava acordado, mas permanecia com a sensação de que estava ouvindo a voz. Era uma voz suave, pausada, carinhosa. Era a voz de dona Rosinha, minha avó. Passados tantos anos da sua morte, voltei a me lembrar de dona Rosinha, que era assim conhecida, mas fora registrada como Rosa Soares de Moura.

Logo após a sua morte, passei muitos anos com o som da sua voz em minha cabeça. Quando acordava, antes de ir dormir, na hora do banho, caminhando na praia...

A lembrança me acompanhou por muitos anos, mas fazia algum tempo que não me ocorria lembrar. No entanto, isso não significa que tenha esquecido seu jeito carinhoso e afável. A saudade me acompanha aonde quer que eu vá.

Demorou muito tempo para que eu entendesse – e não era segredo de família − que a dona Rosinha não era a minha avó e sim a bisavó. Quando minha mãe (Marinalva) nasceu, seu pai, meu avô Moisés, morreu. O fato de a avó Novinha (Maria Fidelis de Moura) ter ficado viúva fez com que ela entregasse a criança para a bisavó criar.

A criança foi registrada como filha da avó dona Rosinha. É por isso que eu chamo e sempre chamei de Vó Rosinha ou dona Rosinha.

Nunca passou pela minha cabeça, nem quando era criança, e hoje também não me preocupo em saber o que ela fez na vida. O que me atraía era a sua fala mansa, pausada e, claro, os seus mimos, distribuídos sem sovinice.

As lembranças dos tempos em que eu era criança e fazia travessuras em sua casa ou para lá corria, fugindo de punições certas de minha mãe − não sem razão, pelas diabruras que realizava. A sua casa, arejada, com um quintal grande e com um pomar bem cuidado, era o meu esconderijo preferido.

Surras não eram permitidas. A casa da Rua Nova era território liberto. Ninguém ousava usar castigos físicos; nem minha mãe, com sua vocação autoritária, ousou. O meu refúgio sempre foi a casa de dona Rosinha.

O quintal-pomar tinha as frutas da minha preferência em abundância: sapoti, pitanga, manga-rosa, manga-jasmim, goiabas brancas e rosas, um pé de romã. E tinha o melhor: a Josefa, fiel escudeira, uma negra alta, de mãos grandes e habilidosas, uma artista na cena doméstica. O que de melhor comi foram os quitutes feitos pela Zefa. A minha memória afetiva me conduz: lembro-me dos sabores e dos prazeres da cozinha e da casa de dona Rosinha.

O lanche das tardes era sagrado. Doces de coco com mamão, leite, caju, broas de goma quentinhas, pé de moleque. O forno a lenha estava sempre aceso. O café passado na hora, torrado em casa. Tudo ou quase tudo era caseiro. As broas começavam a ser preparadas após o almoço.

Dona Rosinha, sentava na sua “cadeira da vovó”, que ficava na sala de visita, ajudava na confecção das broas de goma. Quem fosse chegando era convocado para o trabalho artesanal de produção de broas de goma, iguaria também conhecida como sequilho, feito da farinha de mandioca.

No sábado, dia da feira, a despensa da casa era abastecida com os mantimentos. A energia elétrica era a grande novidade na cidade, e a geladeira − aliás, dona Rosinha, acredito, não chegou a conhecer esse bem, hoje indispensável a qualquer residência.

A água tratada para consumo humano era outra novidade. Demorou alguns anos para que todas as casas tivessem ligações e pudessem consumir água tratada e fornecida pela Casal. O abastecimento de água da casa vinha da cacimba e era armazenada nos potes de barro. Estes eram cuidadosamente colocados num dos cantos da cozinha, do lado da sombra, para manter em temperatura amena, assim resfriando o líquido, observando-se o cuidado para que não entrassem insetos.

Esse ritual demorou alguns anos; não foram muitos, mas como tudo naquela casa era simples e comum, talvez por isso tenha sido tão marcante para mim. Essas lembranças que emergem durante um sonho ou quase sonho, para mim, constituem uma evidência de quão importante são as avós. E como é saudável a infância quando é bem vivida − e se for numa pequena cidade, melhor ainda.

A mesa da casa era o parlatório. A sala de visita era um ambiente confortável, mas onde pouco tempo ficávamos. O melhor lugar da casa era a sala de refeições, área interligada, separada apenas por uma meia-parede com a cozinha.

Esforço-me para lembrar se em alguma ocasião houve alteração na sua voz. Se houve algum grito, esporro ou resmungo.

Resmungar é uma condição, dizem, inerente aos velhos, chatos e mal-humorados. Em nenhuma dessas categorias é possível enquadrá-la. A forma como dona Rosinha se dirigia aos adultos e a nós crianças era a mesma: carinhosa e educada. Hoje, percebo o quanto ela prestava atenção em nossas falas.

Os conselhos, as orientações e as repreensões eram dados sem que houvesse constrangimentos. Os resmungos, esses sim, algumas vezes eram feitos por nós, ao sairmos da mesa.

A dona Rosinha sabia das coisas.

3 comentários:

  1. Linda crônica,Majella! Linda homenagem! O que você descreve me fez dar um passeio na querida São Miguel dos Campos, reviver as férias da infancia e adolescencia na casa da tia Júlia,onde tudo era permitido,sem sovinice,com todos os exageros que exigem as crianças.As frutas,as broas,os doces,os bolos e tantos quitudes...Segundo Ana Jácomo,"a memória afetiva é poema de amor que realça o sabor de tudo".O quintal,palco de muitas brincadeiras, tinha a magia dos sonhos das estorias infantis.Saudades,saudades. Boas lembranças.

    Beijos, Cidinha

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  2. Gostei muito desta sua crônica, Majella, sobre a avó. Muito mesmo.

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  3. Meu Amigo

    somente hoje resolvi te ouvir!
    Que maravilhosa prosa, que saudade tu despertas da infância que também vivi sem traumas. Pouco tempo convivi com minha avó, mas tuas lembranças evocaram em mim as lembranças da minha mãe - mulher forte e destemida. Ai que saudade!
    Parabéns.
    Beijos
    Fátima de Sá

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