Aos 15 anos
O pai quando jovem
Josias Marques(meu pai) e Mendes de Barros
Geraldo de Majella
Quando eu nasci, em 2 de janeiro de 1961, a cidade de Anadia (Alagoas) não dispunha de maternidade e nem sequer médico havia na cidade. O serviço público de saúde era precário, existia apenas um pequeno posto de Puericultura. As gestantes de risco não tinham alternativa a não ser recorrer aos serviços voluntários das parteiras.
A gestação da minha mãe não estava incluída nas de alto risco, mas num parto normal para o qual a Nina Chagas já estava de sobreaviso. “Mãe” Nina, como passei a chamá-la desde muito cedo, fez algumas centenas de partos na cidade e na zona rural.
Católica fervorosa, depois que nasci, rezou, me limpou e foi logo dizendo para os meus pais que eu seria protegido por Senhora Santana. A baixinha, carinhosa, de voz mansa, experiente nessa atividade tão nobre, todas as vezes que se encontrava comigo – desde criança e depois já adulto – me benzia com ramos de arruda ou fazia o sinal da cruz com o polegar direito. E dizia: “Senhora Santana é quem lhe protege, Geraldo”.
O casal, meus pais, havia passado por um momento de profundo pesar com a morte prematura do meu primeiro irmão, que se chamou, por alguns poucos dias, Geraldo de Majella.
O parto foi complicado e por pouco minha mãe não morreu; ele foi extraído a fórceps numa maternidade em Maceió. Da segunda gravidez de minha mãe nasceu a minha irmã Rosa Maria, e eu ao nascer acabei herdando o mesmo nome, pois meu avô Salvador Elísio Marques, que era devoto de São Geraldo, pediu aos meus pais que voltassem a colocar o nome do santo no próximo filho homem. Sobrou para mim o nome.
Anadia é uma cidade centenária, construída pelos portugueses próximo à margem direita do rio São Miguel. Os colonizadores escolheram o bonito e amplo vale que, quando visto do alto – da escadaria da igreja Matriz de Nossa Senhora da Piedade – se tem a visão geral no horizonte da serra da Morena e do São Miguel.
O São Miguel nasce nas terras altas e frias de Mar Vermelho; as águas correm em direção à foz, no Oceano Atlântico, na encantadora Barra de São Miguel, riscando ao meio o vale, fertilizando as terras nas vazantes, pastagens que os holandeses em 1643 disseram ser os mais belos pastos de todo o Brasil, evidentemente do que se conhecia no período colonial.
O rio São Miguel para mim sempre foi um encantamento, e em suas águas calmas no verão e revoltas no inverno, os meninos diariamente saíam em bando, num desafio infanto-juvenil, para mergulhar em todas as direções.
Saltar das árvores mais altas, as ingazeiras preferencialmente. Seria impossível recordar quantas vezes me senti um escafandro mergulhando sem qualquer aparelho, entre as suas pedras, numa profundeza que muitos adultos não se arriscavam; mas menino é assim, indomável, desconsidera o perigo. Para mim e para a maioria dos amigos, nada nos continha.
Saltos ornamentais, ninguém na cidade tinha a menor ideia do que fosse, mas eram dados durante os períodos de enchente, quando o rio transbordava inundando a parte baixa da cidade, a rua do alagadiço ou o sertãozinho.
Meninos e adultos, postados em fila da ponte do Urubu, sobre o São Miguel, saltávamos como se ali fosse uma plataforma, e nós os competidores, acrobatas
As idas diárias ao rio era quase uma religião. No período de estiagem tomávamos banhos, observávamos o trabalho duro das lavadeiras, com trouxas imensas de roupas sendo lavadas, estendidas sobre o capim ou nas cercas de arames farpado, sob o sol escaldante para quarar.
A nossa diversão se dava em meio ao trabalho das mães, das filhas lavadeiras de ganho. Quando adolescente, tendo superado a ingenuidade dos tempos de criança, nossas presenças vespertinas na beira do rio tinham outros interesses não confessáveis: pegar lances picantes das lavadeiras; nos banhos nos finais de tarde, não era raro presenciar algumas delas nuas ou seminuas.
O rio fez parte das nossas vidas. O tempo passou e o rio também passou; já não é o mesmo rio, e as suas águas já não correm com a mesma beleza que na época de criança e adolescente.
A força das águas, por todos perigosamente desafiada. Minha mãe, nervosa, figurativamente andando de um lado para outro com o coração saído pela boca, numa das mãos ou passando de uma para outra mão, uma tabica de cipó-fogo que invariavelmente seria empregada como castigo do filho, que costumeiramente desobedecia as suas ordens e punha a vida em risco, alegremente.
As surras se tornaram um espetáculo. Foram tantas surras, incontáveis, todas motivadas pelas reincidências. O rio tinha um imã que atraia a mim e aos outros moleques, parentes, vizinhos, colegas de escola e também os adultos, que sem minha mãe saber era quem nos protegia e algumas vezes nos salvava dos apuros náuticos.
Mas não eram apenas os banhos o que me levava ao rio São Miguel; outras tantas vezes fui em companhia de José Marques, meu tio-avô, pescar de rede. A nossa praia era o rio. Os pescadores, como em todos os lugares, são excelentes contadores de estórias, e o velho tio para mim era o maior.
Os primos, filhos do tio, também adoravam ouvir as estórias, muitas criadas na hora com uma engenhosidade que até hoje, passados muitos anos, continuo a me lembrar delas e percebo como essa fase da vida me marcou.
Anadia tem para mim um significado quase mítico, uma cidade onde tudo ou quase tudo aconteceu, menos os cem anos de solidão, sem querer traçar qualquer paralelo com a Macondo, cidade mítica de Gabriel García Márquez.
A vida corria solta, livre; eram pouquíssimos os automóveis que trafegavam pelas ruas estreitas, não chegavam a incomodar, muito menos traziam perigo. Sentávamos nas calçadas e contávamos estórias, cada um inventava a sua. O leito das ruas servia de campos improvisados e jogávamos futebol, ximbra, pulávamos garrafão e rouba-bandeira.
Os sonhos corriam soltos de cabeça em cabeça e depois de externados em público os seus detentores tinham a obrigação “moral” de defendê-los no melhor estilo. O que sonhei nunca consegui realizar. Sonhava ser piloto de avião. O desejo de ser livre, de voar, me seduzia tremendamente. Ainda hoje adoro a aviação.
Havia um exemplo familiar para me ancorar, um primo que regulava a idade de meu pai, era oficial da aeronáutica. Era o único da cidade. Talvez por isso fosse por mim tão admirado, filho de uma tia-avó de meu pai, bem postos economicamente, dizia-se ser a família com a maior e melhor propriedade rural do município.
Na impossibilidade de ser piloto de avião, me contentaria em ser caminhoneiro como outros primos da família da minha mãe. Mas também queria ser músico sanfoneiro. Instrumento tão popular, eu me espelhava no mais famoso da região, Antonio do Baião, que se tornou um músico oficial da cidade e nas festas mais importantes era contratado para tocar e cantar. Chegou a gravar um compacto simples. As rádios de Maceió tocaram as suas músicas e, o mais significativo, havia acompanhado o rei do Baião, Luiz Gonzaga, num dos seus shows pelo interior de Alagoas, suprema glória.
A boemia era outra coisa que me atraia, e assim a cada instante mudava de profissão, coisa de criança.
A que mais tempo permaneceu foi a de dançarino de cabaré. Adolescente, fui assíduo frequentador do Pernambuco Novo, rua onde se localizava o cabaré em Anadia. Não só lá, em outros cidades vizinhas, inclusive Arapiraca, que tinha um nome curioso: cabaré do Jesus, alusão clara ao proprietário.
Os dançarinos: Vicente Freire, caminhoneiro de profissão e boêmio como vocação, era um exímio dançarino e disputava nos salões com o primo Luiz Fidelis quem melhor dançava, quem inovava nos passos com movimentos sincronizados.
Todas essas disputas eram embaladas com cervejas e cachaças. O cabaré era o espaço mais utilizado na cidade, já que não havia bailes com frequência. Mas dançar foi uma cosia que nunca aprendi, pelo menos como um dia sonhara num sonho juvenil, e muito menos me tornei dançarino de cabaré, apesar de tê-lo frequentado durante anos.
A transgressão, para mim, acredito tenha sido inata As ordens na infância, adolescência e juventude nunca foram bem-vindas e muito menos aceitas com passividade. Um exemplo: décadas depois vim a compreender quão autoritário é o sistema de ensino. Os castigos físicos eram uma regra, e todas as vezes que sofri algum castigo me rebelei. Sem exceção.
A escola, logo a comparei a uma prisão, e desde muito cedo me postei contra todo tipo de aprisionamento. Recusei-me a aprender as lições regulares ministradas pelas professoras, inclusive minha mãe, que aplicava a pedagogia da palmatória intensiva.
O que mais me atraia eram desenhos, jogos e leituras não obrigatórias. O meu caminho natural não era a sala de aula, mas a sala temida de castigo. Esse local detestado ficava junto à diretoria da escola, junto à pequena e desarrumada biblioteca.
A liberdade de escolher os livros para ler me transportava para outro mundo, o das fantasias extraídas das leituras, a magia do lugar que, diga-se com sinceridade, não era amplo, ventilado ou bem cuidado mas era onde me tranqüilizava, ou melhor, onde eu era “domado” e contido.
A cidade tinha uma biblioteca pública, mas não dispunha de bibliotecário; quem cuidava dela com zelo e carinho era Zeca Olimpio. Aquele senhor, mais velho que meu pai, me cativava, e posso confessar que abriu um novo horizonte para mim: o da leitura e o do gosto pelos livros.
Havia naquela época o sistema de empréstimos de livros, mas antes o Zeca Olimpio indicava o livro apropriado de acordo com a idade e a série, além de uma pequena resenha sobre o autor ou texto. Assim ficava mais agradável ler e vinculava o jovem leitor ao orientador.
A vida foi passando surras fui tomando e caminhos alternativos foram sendo abertos − alguns por meu pai, já que minha mãe, professora das primeiras séries, o que hoje se denomina ensino fundamental, jamais compreendeu que havia outros métodos de ensinamento mais eficazes.
Aulas particulares foram uma das alternativas. Nas aulas de matemática, por exemplo, me saí bem; nada excepcional para mim, a não ser a juventude e a beleza da professora Socorro Peroba: ela, com paciência, me conduziu para o mundo lúdico do desenho e das leituras. O conteúdo diferia do que era dado na escola regular. As escolas que frequentei foram apenas para obter o certificado oficial e passar de ano. Isso, na primeira fase dos estudos no antigo curso ginasial e cientifico.
Depois continuei com o mesmo sofrimento. Tanto isso é verdadeiro que a minha conduta nunca foi das melhores pelas escolas por que passei. E até hoje não sinto nenhum remorso em não saber quantas ilhas há nas Filipinas ou qual a maior ilha fluvial do mundo. Ou coisa do gênero.
Mas sei da importância de Graciliano Ramos para a literatura e para a vida. Isso me basta. Quem me fez gostar dele primeiro foi o Zeca Olimpio. E quantos se lembram daquele velhinho simpático e gentil?
Marinalva Fidelis (mãe)
[...] O Tejo tem grandes navios
Cadeia Pública atual Casa de Cultura de Anadia
[...] O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.
O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vaiE donde ele vem.
E por isso porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.[...]
Fernando Pessoa - Poemas de Alberto Caeiro
Geraldo de Majella
Quando eu nasci, em 2 de janeiro de 1961, a cidade de Anadia (Alagoas) não dispunha de maternidade e nem sequer médico havia na cidade. O serviço público de saúde era precário, existia apenas um pequeno posto de Puericultura. As gestantes de risco não tinham alternativa a não ser recorrer aos serviços voluntários das parteiras.
A gestação da minha mãe não estava incluída nas de alto risco, mas num parto normal para o qual a Nina Chagas já estava de sobreaviso. “Mãe” Nina, como passei a chamá-la desde muito cedo, fez algumas centenas de partos na cidade e na zona rural.
Católica fervorosa, depois que nasci, rezou, me limpou e foi logo dizendo para os meus pais que eu seria protegido por Senhora Santana. A baixinha, carinhosa, de voz mansa, experiente nessa atividade tão nobre, todas as vezes que se encontrava comigo – desde criança e depois já adulto – me benzia com ramos de arruda ou fazia o sinal da cruz com o polegar direito. E dizia: “Senhora Santana é quem lhe protege, Geraldo”.
O casal, meus pais, havia passado por um momento de profundo pesar com a morte prematura do meu primeiro irmão, que se chamou, por alguns poucos dias, Geraldo de Majella.
O parto foi complicado e por pouco minha mãe não morreu; ele foi extraído a fórceps numa maternidade em Maceió. Da segunda gravidez de minha mãe nasceu a minha irmã Rosa Maria, e eu ao nascer acabei herdando o mesmo nome, pois meu avô Salvador Elísio Marques, que era devoto de São Geraldo, pediu aos meus pais que voltassem a colocar o nome do santo no próximo filho homem. Sobrou para mim o nome.
Anadia é uma cidade centenária, construída pelos portugueses próximo à margem direita do rio São Miguel. Os colonizadores escolheram o bonito e amplo vale que, quando visto do alto – da escadaria da igreja Matriz de Nossa Senhora da Piedade – se tem a visão geral no horizonte da serra da Morena e do São Miguel.
O São Miguel nasce nas terras altas e frias de Mar Vermelho; as águas correm em direção à foz, no Oceano Atlântico, na encantadora Barra de São Miguel, riscando ao meio o vale, fertilizando as terras nas vazantes, pastagens que os holandeses em 1643 disseram ser os mais belos pastos de todo o Brasil, evidentemente do que se conhecia no período colonial.
O rio São Miguel para mim sempre foi um encantamento, e em suas águas calmas no verão e revoltas no inverno, os meninos diariamente saíam em bando, num desafio infanto-juvenil, para mergulhar em todas as direções.
Saltar das árvores mais altas, as ingazeiras preferencialmente. Seria impossível recordar quantas vezes me senti um escafandro mergulhando sem qualquer aparelho, entre as suas pedras, numa profundeza que muitos adultos não se arriscavam; mas menino é assim, indomável, desconsidera o perigo. Para mim e para a maioria dos amigos, nada nos continha.
Saltos ornamentais, ninguém na cidade tinha a menor ideia do que fosse, mas eram dados durante os períodos de enchente, quando o rio transbordava inundando a parte baixa da cidade, a rua do alagadiço ou o sertãozinho.
Meninos e adultos, postados em fila da ponte do Urubu, sobre o São Miguel, saltávamos como se ali fosse uma plataforma, e nós os competidores, acrobatas
As idas diárias ao rio era quase uma religião. No período de estiagem tomávamos banhos, observávamos o trabalho duro das lavadeiras, com trouxas imensas de roupas sendo lavadas, estendidas sobre o capim ou nas cercas de arames farpado, sob o sol escaldante para quarar.
A nossa diversão se dava em meio ao trabalho das mães, das filhas lavadeiras de ganho. Quando adolescente, tendo superado a ingenuidade dos tempos de criança, nossas presenças vespertinas na beira do rio tinham outros interesses não confessáveis: pegar lances picantes das lavadeiras; nos banhos nos finais de tarde, não era raro presenciar algumas delas nuas ou seminuas.
O rio fez parte das nossas vidas. O tempo passou e o rio também passou; já não é o mesmo rio, e as suas águas já não correm com a mesma beleza que na época de criança e adolescente.
A força das águas, por todos perigosamente desafiada. Minha mãe, nervosa, figurativamente andando de um lado para outro com o coração saído pela boca, numa das mãos ou passando de uma para outra mão, uma tabica de cipó-fogo que invariavelmente seria empregada como castigo do filho, que costumeiramente desobedecia as suas ordens e punha a vida em risco, alegremente.
As surras se tornaram um espetáculo. Foram tantas surras, incontáveis, todas motivadas pelas reincidências. O rio tinha um imã que atraia a mim e aos outros moleques, parentes, vizinhos, colegas de escola e também os adultos, que sem minha mãe saber era quem nos protegia e algumas vezes nos salvava dos apuros náuticos.
Mas não eram apenas os banhos o que me levava ao rio São Miguel; outras tantas vezes fui em companhia de José Marques, meu tio-avô, pescar de rede. A nossa praia era o rio. Os pescadores, como em todos os lugares, são excelentes contadores de estórias, e o velho tio para mim era o maior.
Os primos, filhos do tio, também adoravam ouvir as estórias, muitas criadas na hora com uma engenhosidade que até hoje, passados muitos anos, continuo a me lembrar delas e percebo como essa fase da vida me marcou.
Anadia tem para mim um significado quase mítico, uma cidade onde tudo ou quase tudo aconteceu, menos os cem anos de solidão, sem querer traçar qualquer paralelo com a Macondo, cidade mítica de Gabriel García Márquez.
A vida corria solta, livre; eram pouquíssimos os automóveis que trafegavam pelas ruas estreitas, não chegavam a incomodar, muito menos traziam perigo. Sentávamos nas calçadas e contávamos estórias, cada um inventava a sua. O leito das ruas servia de campos improvisados e jogávamos futebol, ximbra, pulávamos garrafão e rouba-bandeira.
Os sonhos corriam soltos de cabeça em cabeça e depois de externados em público os seus detentores tinham a obrigação “moral” de defendê-los no melhor estilo. O que sonhei nunca consegui realizar. Sonhava ser piloto de avião. O desejo de ser livre, de voar, me seduzia tremendamente. Ainda hoje adoro a aviação.
Havia um exemplo familiar para me ancorar, um primo que regulava a idade de meu pai, era oficial da aeronáutica. Era o único da cidade. Talvez por isso fosse por mim tão admirado, filho de uma tia-avó de meu pai, bem postos economicamente, dizia-se ser a família com a maior e melhor propriedade rural do município.
Na impossibilidade de ser piloto de avião, me contentaria em ser caminhoneiro como outros primos da família da minha mãe. Mas também queria ser músico sanfoneiro. Instrumento tão popular, eu me espelhava no mais famoso da região, Antonio do Baião, que se tornou um músico oficial da cidade e nas festas mais importantes era contratado para tocar e cantar. Chegou a gravar um compacto simples. As rádios de Maceió tocaram as suas músicas e, o mais significativo, havia acompanhado o rei do Baião, Luiz Gonzaga, num dos seus shows pelo interior de Alagoas, suprema glória.
A boemia era outra coisa que me atraia, e assim a cada instante mudava de profissão, coisa de criança.
A que mais tempo permaneceu foi a de dançarino de cabaré. Adolescente, fui assíduo frequentador do Pernambuco Novo, rua onde se localizava o cabaré em Anadia. Não só lá, em outros cidades vizinhas, inclusive Arapiraca, que tinha um nome curioso: cabaré do Jesus, alusão clara ao proprietário.
Os dançarinos: Vicente Freire, caminhoneiro de profissão e boêmio como vocação, era um exímio dançarino e disputava nos salões com o primo Luiz Fidelis quem melhor dançava, quem inovava nos passos com movimentos sincronizados.
Todas essas disputas eram embaladas com cervejas e cachaças. O cabaré era o espaço mais utilizado na cidade, já que não havia bailes com frequência. Mas dançar foi uma cosia que nunca aprendi, pelo menos como um dia sonhara num sonho juvenil, e muito menos me tornei dançarino de cabaré, apesar de tê-lo frequentado durante anos.
A transgressão, para mim, acredito tenha sido inata As ordens na infância, adolescência e juventude nunca foram bem-vindas e muito menos aceitas com passividade. Um exemplo: décadas depois vim a compreender quão autoritário é o sistema de ensino. Os castigos físicos eram uma regra, e todas as vezes que sofri algum castigo me rebelei. Sem exceção.
A escola, logo a comparei a uma prisão, e desde muito cedo me postei contra todo tipo de aprisionamento. Recusei-me a aprender as lições regulares ministradas pelas professoras, inclusive minha mãe, que aplicava a pedagogia da palmatória intensiva.
O que mais me atraia eram desenhos, jogos e leituras não obrigatórias. O meu caminho natural não era a sala de aula, mas a sala temida de castigo. Esse local detestado ficava junto à diretoria da escola, junto à pequena e desarrumada biblioteca.
A liberdade de escolher os livros para ler me transportava para outro mundo, o das fantasias extraídas das leituras, a magia do lugar que, diga-se com sinceridade, não era amplo, ventilado ou bem cuidado mas era onde me tranqüilizava, ou melhor, onde eu era “domado” e contido.
A cidade tinha uma biblioteca pública, mas não dispunha de bibliotecário; quem cuidava dela com zelo e carinho era Zeca Olimpio. Aquele senhor, mais velho que meu pai, me cativava, e posso confessar que abriu um novo horizonte para mim: o da leitura e o do gosto pelos livros.
Havia naquela época o sistema de empréstimos de livros, mas antes o Zeca Olimpio indicava o livro apropriado de acordo com a idade e a série, além de uma pequena resenha sobre o autor ou texto. Assim ficava mais agradável ler e vinculava o jovem leitor ao orientador.
A vida foi passando surras fui tomando e caminhos alternativos foram sendo abertos − alguns por meu pai, já que minha mãe, professora das primeiras séries, o que hoje se denomina ensino fundamental, jamais compreendeu que havia outros métodos de ensinamento mais eficazes.
Aulas particulares foram uma das alternativas. Nas aulas de matemática, por exemplo, me saí bem; nada excepcional para mim, a não ser a juventude e a beleza da professora Socorro Peroba: ela, com paciência, me conduziu para o mundo lúdico do desenho e das leituras. O conteúdo diferia do que era dado na escola regular. As escolas que frequentei foram apenas para obter o certificado oficial e passar de ano. Isso, na primeira fase dos estudos no antigo curso ginasial e cientifico.
Depois continuei com o mesmo sofrimento. Tanto isso é verdadeiro que a minha conduta nunca foi das melhores pelas escolas por que passei. E até hoje não sinto nenhum remorso em não saber quantas ilhas há nas Filipinas ou qual a maior ilha fluvial do mundo. Ou coisa do gênero.
Mas sei da importância de Graciliano Ramos para a literatura e para a vida. Isso me basta. Quem me fez gostar dele primeiro foi o Zeca Olimpio. E quantos se lembram daquele velhinho simpático e gentil?
Grande Majella,sacanagem!Depois da nossa belíssima caminhada na praia,chego em casa e fico sabendo do seu aniversário.Me pegou,cinquentinha.
ResponderExcluirFelicidades,tudo de bom.Forte abraço.Antonio Carlos
Majella,querido aniversariante!
ResponderExcluirParabéns pela deliciosa crônica e pelo aniversário!
E vamos ao centenário,daqui a mais 50 anos. Felicidades!
Um beijão,
Cidinha Madeiro
Majella, querido,
ResponderExcluirFeliz Aniversário!
Feliz ano novo!
Muito gostoso ler esses fragmentos de sua história de vida marcada por tantas emoções. Tenho a impressão de que esse tempo, em que os rios nos ensinavam a vida, foi mais rico e interessante para todos nós. Você consegue transportar-nos aos cenários vividos em sua infância e adolescência com muita maestria. Adorei o texto! Beijo, Ruth.
Majella, em meio a mais um abraço de aniversário, quero dizer que, depois do texto do enfrentamento da morte e deste, começa a pintar uma autobiografia deliciosa. Parabéns!
ResponderExcluirPrezado Majella,
ResponderExcluirFeliz aniversário, muita saúde, paz e realizações. Caro amigo, texto gostoso de se ler e nós que nascemos e nos criamos nos rincões desse nosso NE, encontrei-me em algumas passagens citadas por você. Magnífico, parabéns.
Raimundo Costa (ex-diretor e sec adjunto da SRA/MDA)
Natal/Rio Grande do Norte.
Parabéns, Majella.
ResponderExcluirgrande escritor majella
ResponderExcluircomo sempre surprendendo com sua verve poetica
parabens
Lindo Texto, Parabéns.
ResponderExcluirMuito legal, Majella. Adorei as fotos da feira de Anadia...
ResponderExcluirPedro da Rocha
Meu amigo Magella me emocionei e sorri muito ao ler sua crônica pq como sua vizinha,amiga de infância(nossos pais eram como irmãos)afinal eram compadres.Viajei no túnel do tempo afinal nascemos no mesmo ano e entre tantos fatos marcantes oque não me sai da lembrança foram as suas tão bem narradas surras que me deixavam traumatizadas...Mas tu era um pequeno rebelde menino!!RsRsrsr...(bendita Mãe Nina que te benzia)MInha saudosa vovó materna!!
ResponderExcluirHj lendo tuas narrativas compreendo o que te fez o Grande homem idealista que despontou no cenário Alagoano e sua vontade de VOAR!afinal não nascestes para viver na mesmice e o céu sempre foi o limite para tantos sonhos e ideais.Parabéns e me orgulho de vc !!abraços
Eluzenita Chagas Costa- Tia Lú
Suas mémórias são incriveis !!obrigada por me emocionar tanto ao homenagear minha inesquecível avó Mãe Nina!!
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