domingo, 9 de janeiro de 2011

Aos 50 anos, o balanço − II [Deixa a vida me levar, vida, leva eu!]

Majella convocando os comerciários para a greve geral em 1986


Passeata pela anistia em 1979

Lauro Pedrosa discursando diante dos estudantes na entrada da reitoria da UFAL

50 Anos

Eu vim aqui prestar contas
De poucos acertos
De erros sem fim
Eu tropecei tanto as tontas
Que acabei chegando no fundo de mim
O filme da vida não quer despedida
E me indica: ache a saída
E pede socorro onde a lua
Que encanta o alto do morro
Que gane que nem cachorro
Correndo atrás do momento que foi vivido
Venha de onde vier
Ninguém lembra porque quer
Eu beijo na boca de hoje
As lágrimas de outra mulher
Cinquenta anos são bodas de sangue
Casei com a inconstância e o prazer
Perdôo a todos, não peço desculpas
Foi isso que eu quis viver
Acolho o futuro de braços abertos
Citando Cartola:
- Eu fiz o que pude
Aos cinquenta anos
Insisto na juventude

Paulinho da Viola
composição: Aldir Blanc e
Cristovão Bastos


Geraldo de Majella

Tenho me distanciado de Anadia; não é caso pensado, no primeiro momento vim morar em Maceió, voltava durante as férias. Fiquei com a sensação de que deixei a cidade, mas a cidade não saiu de dentro de mim.

Nas férias, revia os amigos, caminhava pelas ruas, rememorava fatos vividos durante a infância e adolescência. Fui percebendo: quanto mais o tempo passava e as minhas idas se tornavam raras, quase bissextas, a cidade crescia em minhas lembranças.

Vivendo em Maceió, estudante na década de 1970, a volta, mesmo que fosse rápida, era um encantamento. Fazia comparações entre uma cidade e outra. Procurava sempre encontrar uma situação nas comparações que fosse favorável a Anadia, claro. Isso tinha a importância semelhante a um pagamento, pois eu estava quitando uma divida sentimental, certamente por ter deixado de viver na cidade onde nasci.

Se em Maceió há praias, naquele tempo, o rio São Miguel era comparativamente melhor para mim. A lembrança da praia do Sobral nunca me saiu das retinas, desde o primeiro instante em que a avistei, sentado na mureta da casa da Bebé Carneiro de Moura, prima querida, na rua Dias Cabral. Que visão mágica!

Fui crescendo e passei a conhecer os meandros da malandragem e da boemia na capital. Sentia-me um adulto, sem emprego, vida de estudante, com pouquíssimo dinheiro, mas com relativa liberdade, conquistando novos amigos, alguns ricos, outros remediados. Essas diferenças de classe não me diziam nada até então.

A praça Deodoro era um point de estudantes, boêmios, artistas, jovens intelectuais. Fui aos poucos conquistando espaço naquele meio; tudo era novo e perigoso também: rolavam drogas, o álcool predominava entre as drogas, sendo a maconha, entre as ilícitas, a que mais era consumida.

O clima político que o país vivia era de opressão; a ditadura militar exercia controle sobre as pessoas e sobre as coisas. A turma heterogênea da praça ficava entre a banca de revista e os botecos do entorno; a figura destacada do cantor negro César Rodrigues, vestido como se fosse um sósia de Fidel Castro, Marcos de Farias Costa, Marcelino Máximo Dantas, e os discursos alucinados do dr. Rui Sales.

Nada me continha, porque o desejo de conhecer o mundo, pelo menos o mundo que estava em minha volta, tinha de ser conhecido, vivido, correndo riscos − e os corri. Entendo hoje que foram necessários. Havia pois um certo grau de responsabilidade em tudo ou quase tudo que eu fazia. Pode parecer uma incoerência, mas, creiam, não me joguei de cabeça em tudo.

A frase tantas vezes dita por meu pai ecoava em minha cabeça; ainda hoje reflito a esse respeito: “Tenha cuidado com quem você anda e o que faz, pois não tenho dinheiro para lhe tirar da cadeia. Não vou suportar vê-lo na cadeia”.

Para o meu pai, homem do interior, quem tinha dinheiro não era preso; mesmo durante a ditadura militar, a força do dinheiro ditava tudo na vida. A vida me ensinou que o velho não estava de todo errado, não. Nunca fui preso ou detido para averiguações.

As “notícias” que chegavam aos ouvidos do meu pai − com um certo atraso −, nunca eram as reais, com destaque para fatos que não ocorriam. Em alguns momentos esses fuxicos se aproximavam da realidade. A mistura de temas era propositalmente feita. Lembro de uma farra de que participei em companhia de amigos de Anadia − todos saindo da adolescência −, no Canaã, zona de prostituição de Maceió.

A prova irrefutável foi a farta documentação manuseada pelos meus pais. O fotógrafo conhecia a minha família, tinha sido inclusive aluno de minha mãe, e também conhecia a família de dois dos farristas, os irmãos Lauro e Luiz Carlos Teixeira.

O paparazzi anadiense rapidamente nos convenceu de posarmos com a putada; concordamos, e com os copos nas mãos, sorrisos largos e gestos extravagantes, fomos clicados. Em poucos dias, visitando Anadia, foi entregar as fotografias e receber pelo serviço, lógico. Fotografias grandes, creio fossem tipo 15 x 22cm, em que posávamos na Areia Branca, a mais famosa casa do ramo, que tinha o lendário Benedito Alves dos Santos, o Mossoró, como proprietário. Diga-se de passagem, figura cortejada na sociedade alagoana.

Foi um vexame, pois não tive como negar; o máximo que pude fazer foi atenuar a situação, colocando a responsabilidade na “conta” de um primo muito mais velho, Lucas Fidelis Freire. Mesmo assim não me livrei do sermão quase interminável de meu pai e do estado colérico de minha mãe.

Movimento estudantil

A política estudantil foi me atraindo e em pouco tempo se descortinava um mundo totalmente novo e atraente. A noção exata do perigo, confesso que no primeiro momento não tive; tudo era emoção e vontade de fazer algo que fosse importante para derrubar o regime militar. Eu queria era viver aqueles momentos.

Isso no colégio Guido de Fontgalland, para onde havia ido estudar, já que fora convidado “gentilmente” a deixar o colégio Marista, depois de quatro anos estudando como bolsista, visto que a minha conduta não era compatível com a disciplina dos irmãos Marista.

Para os meus pais o que motivou a minha saída do colégio Marista foi a discriminação de classe. Era um mundo de rico, portanto não era possível ser tratado de forma diferenciada. A alternativa possível era ir estudar no colégio Guido. Salvei-me dos constrangimentos e quem sabe ainda de reprimendas de minha mãe.

A minha porta de entrada para o movimento estudantil estava no colégio Guido de Fontgalland. No primeiro dia de aula, encontrei José Miguel Correia; desse dia em diante nos tornamos amigos e logo percebemos que tínhamos amigos em comum. Eu era amigo de Sebastião Barbosa de Araújo (Betinho), advogado e ex-deputado; ele, amigo e funcionário da usina João de Deus, que tinha Antonio Moreira como diretor e sócio. Betinho e Antonio eram amigos de longas datas.
Betinho, militante do PCB, e Antonio Moreira, aliado e colaborador financeiro. Eu de Anadia e Miguel de Capela. Não demorou, estávamos reativando o Grêmio Jacques Maritain, inicialmente com a permissão do cônego Teófanes Barros, diretor do colégio. Antes, falamos em nome dos dois ex-alunos do cônego, o que nos serviu de salvo-conduto. Estou tratando de 1978, período em que o regime militar ainda era forte e vigilante.

As relações políticas cresceram e aos poucos novos interlocutores foram aparecendo: Hegênio Ticianelli, Vitor Palmeira, Apolinário Rebelo, Pedro Fidelis, Eunides Lins e outros. Sob a influência de Betinho começamos a transitar no movimento estudantil secundarista.

As tarefas começaram a aparecer; tudo era novidade, e nos desdobrávamos para cumprir reuniões, muitas reuniões, umas comicamente para marcar outras, mas o que importava era a agitação, as pichações, as colagens de cartazes pelas ruas da cidade durante a noite, o mais tarde possível.

O bunker eram as pequenas salas laterais do restaurante universitário e da moradia dos estudantes na praça Sinimbu. Entre todos os estudantes o que mais me chamava a atenção era um tipo magricela, de cabelos desgrenhados, que liderava sem gritar, argumentava com inteligência e pouco chavão. O nome dele: Aldo Rebelo.

No final dos anos 1970 e toda a década de 1980 surgiram grandes lideranças. O movimento estudantil foi o primeiro grupo que se organizou em Alagoas, em meio à ditadura militar e às prisões, com a aplicação do Decreto 477. As vitórias, algumas pequenas, porém significativas, nos centros Acadêmicos, por exemplo, fizeram parte da vitória maior que foi a retomada do DCE da Ufal, com a eleição de Maurício Macedo, hoje médico e consagrado poeta das Alagoas.

Essa euforia me contagiava; mesmo não sendo universitário, me sentia parte integrante da luta. Era um deles. As atividades cotidianas consumiam o tempo. Tudo girava em torno das inúmeras tarefas; vivia-se numa roda-viva, mas a preocupação com a leitura e a formação política era obrigatória.

Fiquei, e creio que o José Miguel também ficou no meio do fogo cruzado. Os nossos contatos políticos eram baseados na orientação política do Partidão; já os outros, a maioria dos estudantes secundaristas, eram área de influência do PCdoB, força política hegemônica naquela época.

Para ser sincero, o PCB ainda não estava organizado; só a partir de 1980, alguns meses depois da anistia, é que ocorreu a reunião que deu início à reorganização do que havia sido a maior força política de esquerda em Alagoas.

A revolução nicaraguense foi a nossa Sierra Maestra − para mim e para essa geração. Dezenas de estudantes foram mobilizados para arrecadar remédios, visando socorrer o povo daquele país, que sofria com mais um trágico terremoto. Esse gesto humanitário contou com o apoio da Cruz Vermelha.

Tudo passou a ser um aprendizado, e que aprendizado! As disputas ideológicas nos dividiam, a exemplo da Guerra Fria. O movimento estudantil foi uma escola para muita gente. Aldo Rebelo, Edberto Ticianelli, Enio Lins, na Ufal, entre muitos outros; e Júlio Bandeira, Lauro Pedrosa, na antiga Escola de Ciências Médicas, eram os regentes da agitação organizada em Alagoas. O brado, quem deu pelos estudantes foi Renan Calheiros, não há como esconder, pois foi o legítimo representante da estudantada que vociferava pelo campus da Ufal por liberdade.

Não me tornei um líder estudantil, apenas fui eleito presidente do Centro Acadêmico da minha faculdade, mas nem por isso deixo de confessar que o movimento estudantil foi uma grande escola.

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