domingo, 19 de dezembro de 2010

Lula e o povo

Lula no estádio da Vila Euclides

Lula com o povo

17/12/2010 - 08h12

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva intensificou o ritmo de viagens pelo Brasil no último mês de governo. As despedidas ao estilo Silvio Caldas têm sido criticadas. Para alguns, Lula estaria quebrando a liturgia do cargo, comportando-se como um caudilho que não consegue suportar a perda das mordomias presidenciais. Na opinião de outros, ele seria emotivo demais para um cargo que exigiria maior compostura. Fala-se até em desrespeito institucional.

São críticas injustas. Mais uma vez, o presidente é subestimado. Atribuem a ele intenções menores, como se o contato com a população fosse uma manipulação e não um sentimento real.

Ora, Lula é um presidente com uma trajetória pessoal e política diferente dos que governaram antes. É o primeiro metalúrgico eleito para comandar o país. Não esconde que é emotivo, chorão. Fala que governa com o coração. Nunca quis se comportar como um intelectual ou um lorde na Presidência.

Nos dias 13 e 14 de dezembro, em viagem ao Ceará, Paraíba e Pernambuco, Lula fez discursos e gestos civilizadores do ponto de vista político.
Em Missão Velha (CE), falou para uma multidão que aguardava sua chegada numa estação de trem. Ele havia andado no vagão de passageiros VIPs da ferrovia Transnordestina. Encontrou homens e mulheres sorrindo e chorando ao ver um presidente com o qual se identificavam.

No característico estilo informal, deixou o discurso escrito de lado e improvisou. Disse que os nordestinos tinham o direito de ambicionar ser mais do que serventes de pedreiro em São Paulo. Subiu o tom de voz para afirmar que podiam sonhar em ser médicos, arquitetos, advogados. Retratava a sua própria história. Desceu do palanque e foi abraçar, beijar e tirar foto com quem quisesse.

Na visita a São José de Piranhas (PB), andou dentro de um túnel que está no começo da construção. Quando ficar pronta, em 2012, a obra servirá de leito à transposição das águas do rio São Francisco. Terá 15 quilômetros.

Informado de que um grupo aparecera fora do roteiro, ele, mesmo atrasado, foi falar com cerca de 100 pessoas _a maioria funcionários da obra e seus familiares. Um adolescente veio com o pai e a mãe de João Pessoa (horas de carro em estrada ruim) para conhecer o presidente. Os dois se abraçaram e choraram.


Lula discursou sobre a emoção de um "filho de dona Lindu" executar algo que o imperador Pedro 2º sonhara realizar. Mais uma vez, repetiu que as mudanças inegáveis no Nordeste, região que tem crescido acima da média nacional, criaram oportunidades para melhorar de vida de todos ali. Incentivou nordestinos a ter orgulho de sua origem. Reconheceu que faltava muito por fazer, mas que todos deveriam ajudar Dilma Rousseff a fazer mais e melhor. Disse que, fora da Presidência, gostaria de voltar ali e participar da inauguração do canal.

Nesse mesmo dia, em Salgueiro (PE), numa tarde com 38ºC, entregou títulos de propriedade a famílias que serão reassentadas numa área rural beneficiada pela transposição. O discurso das outras solenidades se repetiu em linhas gerais, mas despertou atenção uma conversa entre uma moça e o presidente ao final, quando ele tradicionalmente desce do palanque para atender aos pedidos de fotos, beijos e abraços.


Sem os incisivos superiores, ela pediu a Lula que lhe arrumasse os dentes. Quando um repórter se aproximou, ela fechou a boca.


Passou a falar com Lula aos murmúrios. Olhos marejados, o presidente chamou o prefeito da cidade. Perguntou se ele havia recebido verba do programa "Brasil Sorridente". O prefeito disse que sim.

O presidente pediu, então, que o prefeito cuidasse pessoalmente do caso da moça, que ele iria acompanhar mesmo depois de sair do Palácio do Planalto. Virou-se para ela e deixou claro que não seria preciso pagar nada. Repetiu que era um direito dela e que ela fazia muito bem em querer colocar dentes novos, para ficar mais bonita.

Despediram-se com um beijo e um abraço daqueles de urso que Lula costuma dar. Ela se afastou e sorriu. O repórter quis saber seu nome. Envergonhada, ela tapou a boca e disse que não queria conversa.


Antes de entrar no carro para outro ato, Lula falou com Júlio Bersot, assessor que pega todos os bilhetes e pedidos nos eventos. Pediu que acompanhasse o caso da moça e que cobrasse o prefeito.

Nesses dois dias, Lula discursou e chorou muito. Não consta que tenha dito algo impróprio para um presidente com a sua biografia.

Regra do jogo

As críticas sobre o comportamento de Lula em relação às instituições devem ser vistas pelos dois lados. É fato que ele passou a mão na cabeça de muitos companheiros acusados de crimes, o que é um erro para quem deve ser o primeiro a dar o exemplo. Mas tem a seu favor, pelo menos, duas atitudes que valeram mais do que palavras.

Nomeou quatro vezes para procurador-geral da República o candidato mais votado na lista do Ministério Público. Esse cargo tem o poder de pedir abertura de investigação contra o presidente no STF (Supremo Tribunal Federal).
Também fugiu da tentação de mudar a Constituição para concorrer a um terceiro mandato.

É salutar que Lula seja criticado, mas ele tem o direito de espernear e de apresentar seus argumentos. Tem o direito de ir aonde o povo está. Tem o direito de defender o seu governo. Não faz nada contra a regra do jogo. Está fazendo política.

Se o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e os tucanos tivessem feito o mesmo em relação ao bom trabalho do PSDB entre 1995 e 2002, não estariam no mato sem cachorro em que estão.

Lula deixa Brasília com popularidade recorde. A fotografia na história será bem mais positiva do que negativa. Cumpriu a promessa básica de melhorar a vida dos mais pobres. Ampliou a relevância do Brasil no mundo. Elevou a auto-estima dos brasileiros. Errou na política, sobretudo ao contrariar a pregação ética do PT, como mostrou o mensalão. Houve excesso de pragmatismo nas alianças políticas, mas ele precisou delas para governar um país complexo, ainda atrasado em muitos aspectos.

No balanço geral, fez um bom governo. Se comparado às expectativas que o cercavam na eleição de 2002, realizou uma ótima administração.


Kennedy Alencar, 43, colunista da Folha.com e repórter especial da Folha em Brasília. Escreve na Folha.com às sextas. É comentarista do telejornal noturno RedeTVNews. E apresenta o programa de entrevistas "É Notícia", às 0h15 na noite de domingo para segunda.



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