quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Testamento Diante da Morte

Geraldo de Majella

Paulo Décio e Majella

Álvaro Guimarães, o cardiologista José Wanderlei e Majella
O escritor Carlito Lima, Majella e a médica Cidinha Madeiro

Aos 14 anos

Com Isabela na praia do Sonho Verde em Maceió

Geraldo de Majella


A morte é uma ave agourenta que vive sobre as nossas cabeças. É uma certeza que temos, e ninguém duvida que um dia vai morrer. É a única certeza na vida. No meu caso em particular, venho espantado esse bicho de tempos em tempos, que se aproxima e tenta me bicar. É um bicho feio, sem nenhum ponto de candura ou beleza. É tristeza pura. Voos rasantes, confesso, sobre a minha cabeça, essa ave agourenta fez, mas não logrou êxito, até o momento, evidentemente.

O primeiro encontro com a morte. Quando eu tinha quase 15 anos, num carnaval em Anadia, num gesto em que misturei afoiteza e irresponsabilidade, montei num cavalo em pelo, sem arreios e cela, açoitando o animal, que desabalou como se estivesse competindo numa raia do Jóquei Clube. Ao tentar fazê-lo parar, ocorreu o pior: bruscamente o cavalo parou, e o “jóquei” anadiense se desequilibrou e caiu de cabeça no chão. O resultado foi a quase morte: um corte profundo entre a testa e o meio da cabeça, restando uma poça de sangue em terra batida e um corte de grande profundidade. Levei 22 pontos.

Perda dos sentidos, remoção para Maceió e o fim dos festejos carnavalescos para a minha família; preocupação, dor, sofrimento, tudo causado por mais umas das minhas peraltices. A morte andou pertinho. Vi-a pessoalmente. Dei um chega pra lá e sobrevivi sem sequelas. Restou o trauma de andar a cavalo.

O segundo encontro. Adulto e morando em São Paulo, no dia 14 de maio de 1993, no Hospital do Servidor Público Municipal, nascia Isabela Camargo, minha filha. Apreensivo para que não houvesse troca do bebê – crime usual nos hospitais brasileiros –, me informei antecipadamente por onde a criança passaria obrigatoriamente e em posição de sentido me postei. Naquele momento não era um pai, mas um soldado, um guarda pretoriano.

Isabela nasceu, a enfermeira gentilmente me mostrou e pediu que olhasse a pulseira que a identificava. O meu contentamento era incontido, a enfermeira se dirigia para o berçário e o pai, “tonto e babão”, sem se aperceber acompanhava até ser educadamente impedido de entrar no ambiente dos recém-nascidos.

Tudo era alegria, em companhia dos amigos Luiz Augusto Cannizzaro [Guto] e Paulo de Tarso Dutra, o PT, fomos à noite a boate Blue Note, na Avenida São Gabriel, assistir ao show do músico Muri Costa. Tomei todas, e lá pelas três da manhã saímos eu e Guto. Qual não foi a nossa surpresa, no escuro da rua tropeçamos num assaltante que agia calmamente. A nossa alegria, a minha mais do que a dos amigos, se transformou num tormento.

O bandido, que tentava arrombar um automóvel de arma em punho, nos acusava de bandidos e com a arma engatilhada apontou na direção do Guto e o atingiu pouco abaixo do olho esquerdo. O sangue escorreu pelo rosto, molhando a camisa; ato contínuo, se vira para mim apontando o trabuco e vociferando impropérios e as gírias paulistanas.

Esses poucos segundos duraram uma eternidade. A alegria do nascimento da filha, a possibilidade de morrer de graça por um assaltante que se arvorava em autoridade, e nós, dois jovens bêbados e cheios de vida, iríamos ficar estendidos no asfalto de uma das ruas do Jardins paulistano− bairro nobre, nós pobres. Quanta coisa passou pela minha cabeça naqueles instantes fatídicos. O desespero contido diante da ameaça de morte me ocorreu, interrompendo “respeitosamente” a falação do bandido, quase pedindo licença.

Entrei na dele e falei calmamente: “Ô mano, nós somos da área, você tá fazendo o seu, cara. Estamos indo pra casa, deixa a gente.” O dialogo foi curto, da minha parte; na deixa, o Guto, que estava com as mãos no rosto e tinha muito mais conhecimento das gírias paulistana, também falou, suplicando diante da fera. O resumo da quase tragédia foi o seguinte: saímos com vida, como bandidos, e em direção ao hospital 9 de Julho para cuidar do ferimento do amigo.

Ás 5 da manhã, mais ou menos, tomamos a última cerveja numa padaria perto do hospital e fomos cada um para a sua casa.

O terceiro encontro. Acordei cedo, como é meu hábito, tomei banho e me dirigi para o Flat do Hotel Jatiúca às 6h30, para o café da manhã com o amigo Ricardo Aragão. O café foi tomado, conversamos, e como Ricardo tinha pressa para chegar a Delmiro Gouveia, cidade localizada no sertão, a 320 km de Maceió, nos despedimos e marcamos novo encontro para o dia seguinte.

Dirigi-me ao estacionamento e encontrei um dos pneus do meu carro baixo. Iniciei o trabalho para a troca do pneu, senti uma dor no peito, mas na hora não a identifiquei bem. Mesmo assim continuei a troca, suado, e fui para casa tomar banho e trocar a roupa.

A dor persistia; tomei banho, troquei a roupa, pensativo e tenso, senti que poderia ser algo sério. Vi-me diante da possibilidade de que a dor poderia ser sinal de um infarto. Mantive a calma, aparente, fui ao quarto da Isabela, acordei-a e pedi que fosse comigo ao hospital, porque estava me sentindo mal.

Fui dirigindo para o hospital da Unimed. Durante o percurso, passei a minha carteira com os documentos e cartões de crédito para Isabela, e pedi-lhe que anotasse o número das contas e as senhas dos cartões de créditos. Iniciei o que eu estou denominando de testamento oral. Aos dezessete anos, Isabela anota as informações que vou passando. Percebo que os seus olhos vão ficando vermelhos e lágrimas descem pelo rosto. Situação dura para ela, uma adolescente que foi acordada para vivenciar tal situação.

A intenção era não criar nenhum tipo de revoada de amigos ou parentes até o hospital. Por isso mesmo recomendei à Isabela que não avisasse aos nossos parentes de Alagoas e que não telefonasse para São Paulo, onde mora a sua avó [minha ex-sogra] materna, sua mãe e seus tios. Nada de alarme. Serenidade era tudo o que eu estava querendo. Ainda no trajeto até o hospital da Unimed, pedi que ligasse para o meu colega de trabalho, Rodrigo Marques; é um cara “safo” e poderia, como de fato ocorreu, me ajudar naquele momento quase desesperador.

Fui atendido pelo Dr. Cid, amigo dos tempos em que estudávamos no Colégio Marista. Rapidamente me socorreu e diagnosticou o infarto. Perguntou quem era o meu cardiologista, e eu lhe disse que era o Dr. José Wanderley Neto. Sem perder tempo ligou para o setor de cardiologia da Santa Casa de Misericórdia de Maceió, avisou ao Dr. Mário Martiniano, médico da UTI coronariana, que eu estaria chegando para os procedimentos médicos necessários.

Deitado num leito do hospital da Unimed, continuei o meu testamento oral, para Isabela. Pedi a Rodrigo que ligasse para o camarada Júlio Bandeira, médico e amigo, pois ele também se encarregaria de me ajudar. Imediatamente Júlio se comunicou com o Dr. Wanderley, que estava em Palácio, pois havia assumido interinamente o Governo de Alagoas. Mesmo assim ligou para o grupo de colegas que trabalha com ele na Santa Casa, recomendando o meu caso e se dirigiu para a Santa Casa. Isto vim a saber quando estava indo para a UTI.

A notícia foi rapidamente se espalhando, a partir dos colegas de trabalho, que foram avisando os outros, e não demorou muito os irmãos Lauro e Petrúcio Bandeira estavam junto a mim, no hospital da Unimed, acompanhando-me até a Santa Casa.

Continuei ditando o meu testamento. Em caso de morte, disse, não quero missa, reza, qualquer ato religioso. Que fique claro, não sou religioso, mas também não sou militante contra as religiões. Respeito todas. Tenho muitos amigos padres, evangélicos, espíritas, umbandistas. O meu desejo é que haja no meu enterro muita música, bebida alcoólica, dança, alegria, enfim, que seja uma manifestação profana. Se houver condições, levem o Wellington para tocar tudo que ele sabe de samba, choro, baião, frevo, maxixe...

Quanto aos meus livros, você, Isabela, escolha o que deseja ficar, e os demais doe para a biblioteca da Universidade Federal de Alagoas. As fotografias − são milhares −, entregue ao Dr. Luiz Nogueira Barros, meu amigo e membro do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas – IHGAL, pois ele saberá dar um destino adequado para o acervo fotográfico.

A minha fala naquele momento aparentava ser calma, para os que estavam me ouvindo em volta da cama do hospital, mas em minha cabeça a ideia de morte era muito concreta. Intimamente eu me debatia contra essa ave agourenta, sentindo que poderia vencê-la mais uma vez. Mas corria contra o tempo. O meu pensamento a cada momento ia ficando mais sereno; o oxigênio colocado em meu nariz abria uma fenda na rocha.

Viver sempre foi um prazer para mim; nunca tive ideias de suicídio e muito menos de morrer antes dos oitenta anos e dormindo, depois de uma noitada intensa de amor e boemia. Mas naquele instante nada disso acontecia, nem havia acontecido na noite anterior. O que de fato ocorreu na noite anterior, no dia 30 de setembro: eu compareci, em companhia do poeta Sidney Wanderley, ao lançamento do livro Saudação Noturna – Crônicas de José Aragão, personagem do mundo cultural da cidade de Viçosa - Alagoas, livro organizado pelo Denis Portela de Melo.

Os quase quarenta minutos passados no hospital da Unimed até a chegada da ambulância que me levou para a Santa Casa de Misericórdia me deixaram no limite da ansiedade. O que pensava era numa velocidade surpreendente; nunca havia estado em tal condição de impotência absoluta quanto ao meu destino. Ao meu lado, sempre, a minha filha, e eu a pensar nela desde o seu nascimento e principalmente no que poderia lhe ocorrer no futuro a partir da minha morte.

Continuei a ditar os meus desejos, sem conter a minha volúpia para transmitir-lhe conselhos de como proceder na vida. Agora, revendo o momento, tentei permanecer calmo, com a racional intenção de tranquilizar Isabela, diante daquela circunstância. A ambulância chegou com uma médica e um enfermeiro que se apresentaram simpaticamente e me conduziram até aquele ambiente esquisito. Nunca havia entrado numa ambulância, a não ser como acompanhante.

Quando o motorista deu partida, senti intuitivamente que não morreria mais. Isabela, sentada na frente, ao lado do motorista; eu, conversando com a médica e com o enfermeiro. No trajeto feito, rápido, fui descrevendo com acerto cada curva da ladeira Geraldo Santos; quando entrou na rua Barão de Atalaia, comentei algo; depois passamos pela praça dos Palmares e finalmente adentramos a rua Pedro Monteiro.

Os relatos de memória que fiz na ambulância serviam como uma espécie de relato de partida. Fui aproveitando a ocasião para contar sucintamente fatos ocorridos na minha juventude, na avenida dom Antonio Brandão, onde se localiza o Colégio Marista, lugar em que havia estudado por quatro anos. As lembranças vinham aos borbotões.

A entrada da ambulância no setor de cardiologia da Santa Casa renovou as minhas convicções. Quais eram essas convicções? Se até aquele momento eu não havia morrido, os profissionais da cardiologia resolveriam esse problema. Isso, cheguei a falar para a médica e para o enfermeiro. Mudei radicalmente, inclusive o humor; era a certeza de que continuaria a viver e a criar a minha filha. Em todo tempo nunca desacreditei da ciência e dos que a manejam. Dito e feito.

Fui entregue a três gentis profissionais, simpáticas e bem-humoradas. Permaneci deitado; apenas mudaram-me de maca e ocorre o inusitado: barbeador, esparadrapo, toalha, iniciaram a depilação, procedimento obrigatório para se fazer a angioplastia. Dei-me conta da cena e iniciei um dialogo surrealista, fantástico. Perguntei o nome de cada uma das enfermeiras. A que estava com o barbeador disse que se chamava Jovelina.

Falei: − Jovelina é o nome de uma sambista carioca, Jovelina Pérola Negra. Foi quando ela disse que o pai gostava da cantora e resolveu colocar esse nome nela. Prontamente cantarolei um pagode que a Jovelina gravou: “Fui no pagode/ acabou a comida/ acabou a bebida/ acabou a canja/ sobrou para mim o bagaço da laranja/ [...] Toma cuidado, pretinha, que a polícia te manja [...].”

Voltei-me para a que estava em frente e perguntei: − Como é o seu nome? − Nara. − Ah, só tem artista cuidando de mim: Jovelina Pérola Negra e Nara Leão − brinquei. A outra logo disse: − O meu é Luciene. Não deixei por menos: eu tenho uma amiga de Pão de Açúcar, presidente de uma cooperativa, que se chama Luciene.

Familiarizado, fui dizendo o que estava sentindo: − Olha, se eu morrer, morro feliz. Nunca imaginei que teria três mulheres cuidando de mim. Vocês, com a maior intimidade e profissionalismo, pegam o meu pinto, levantam, baixam de um lado para o outro, e eu quase morto, mas muito satisfeito, nesse instante. Muitas vezes, conversando com amigos, disse que gostaria de morrer dormindo, depois de uma noitada de sexo, mas vejo que também essa maneira de morrer é boa. Boa, não, maravilhosa; seria, não nego, uma glória para mim.

Brinquei mais uma vez: − Agora eu quero arrancar um compromisso: se eu morrer, quero que os meus órgãos sejam doados (isso eu já havia falado para a Isabela); o meu pinto tem de ser lançado ao mar, mas na praia de Jatiúca; naquele mar ele saberá se salvar. A minha alma, essa já tem destino certo: vai direto para o Pernambuco Novo, rua onde ficava o cabaré de Anadia. Junto às putas, ela certamente ficará bem, não tenho dúvidas.

Todas riram, e nenhuma delas deixou baixar o astral. Decididamente eu estava preparado para espantar a morte. Mas tudo isso só poderia ser verdadeiro devido aos procedimentos que o Dr. Gilvan Dourado conduziu, desobstruindo duas artérias, salvando-me e deixando indelevelmente a marca da ciência em meu coração: dois estentes.

Nos poucos mais de cinquenta minutos em que estive de olhos fixos no monitor do computador, em permanente diálogo com o Dr. Gilvan Dourado, vendo o pulsar do meu coração que estava sendo reparado, espetado por um cateter, ouvi da boca dele: − Desse você não morre. Intimamente, quase gritei: − Eureca!

Nunca alguém havia sido tão categórico para mim e eu, claro também, jamais havia estado em tão precária situação. Encontrava-me, como se diz em Anadia, “nas mãos do último dono.”

Lembrava-me resignado do meu pai, da minha mãe, que morrera dragada pelo câncer, de muitos amigos, um deles em particular: Gildo Marçal Brandão, que travou uma “luta corporal” com a morte por 61 anos. O coração sempre foi o seu ponto frágil, não porque deixasse de amar a vida, as mulheres e a humanidade, mas por complicações congênitas.

Eu, através das mãos habilidosas do Dr. Gilvan Dourado, estava impondo mais uma derrota à morte. Pode parecer pretensioso, mas é assim mesmo que me sinto, não sou hipócrita. Vade retro, Satanás!

Dois fragmentos de sambas me ocorriam em meio ao turbilhão de lembranças, desejos, recomendações e paúra. Mas foi depois da angioplastia, quando ouvi “desse você não morre”. Foi uma explosão interior de alegria. Cantarolei para mim Cartola e Paulinho da Viola, meus preferidos.

O do Cartola foi “Preciso Me Encontrar”, Sabiamente o sambista da Estação Primeira de Mangueira diz:

“Deixe-me ir
Preciso andar
Vou por aí a procurar
Rir prá não chorar.
Quero assistir ao sol nascer
Ver as águas dos rios correr
Ouvir os pássaros cantar
Eu quero nascer
Quero viver [...]”

O samba do Paulinho da Viola foi “Argumento”. Essas duas músicas sempre me acompanharam, e eu, se soubesse cantar, teria saido da cama onde foi realizada a angioplastia cantando-as em alta voz pelos corredores e, quando chegasse na UTI, realizaria um show, solo, evidentemente, mas transbordante de alegria.

“Sem preconceito ou mania de passado
Sem querer ficar do lado de quem não quer navegar
Faça como um velho marinheiro
Que durante o nevoeiro
Leva o barco devagar [...]”

2 comentários:

  1. Na verdade ,o médico que você cita como Mário Salustiano é o nosso querido Mário Martiniano, gente da melhor qualidade.Abraços.

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  2. JOSE BRANDÃO VIEIRA JÚNIOR31 de dezembro de 2010 às 08:36

    Confesso que chorei muito ao parar no trecho que fala da luta de meu querido irmão Gildo pela vida. Sei o quanto voçês se gostavam e se respeitavam. A dor e o vazio é muito grande. Certa vez, Simone, esposa dele disse-me o quanto era difícil a sua ausência, mas, talvez, para nós, fosse mais fácil, pois só nos víamos duas a três vezes por ano. Ledo engano, pois a dor que sinto não dá para separar se de irmão, filho ou pai. Um grande abraço e um 2011 muito melhor, pois 2010 nos maltratou muito!!! Brandão, seu amigo e leitor.

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